Acórdão nº 667/06.8TBOHP.C2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Março de 2011

Magistrado ResponsávelHELDER ROQUE
Data da Resolução02 de Março de 2011
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (1): AA, residente na T... J... de D..., nº ..., O... do H.., propôs a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB-“Companhia de Seguros I... B... SA”, com sede na Rua A... H..., nº .., Lisboa, pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a pagar ao autor a quantia de €76.814,00 (setenta e seis mil oitocentos e catorze euros), acrescida de juros, à taxa legal, a contar da citação e até integral cumprimento, alegando, para tanto, em resumo, que, na qualidade de bombeiro voluntário da Associação dos Bombeiros Voluntários de O... do H..., com a categoria de motorista, desde 3 de Setembro de 2002, inscrito no Comando Distrital de Operações de Socorro de Coimbra do Serviço Nacional de Bombeiros, conduzia, no passado no dia 10 de Outubro de 2005, um veículo de transporte de doentes, com a matrícula ...-...-RV, tendo perdido o controlo da viatura, despistando-se e, por força desse acidente, sofreu diversas lesões de que resultou para si uma situação de invalidez permanente, acrescentando que é beneficiário de seguro de acidentes pessoais, celebrado entre o Município de O... do H... e a ré, e que, até à data, não obstante as comunicações legais, esta ainda não efectuou qualquer pagamento, no âmbito deste contrato.

Na contestação, a ré defende-se, por impugnação, alegando, também, em síntese, que o autor não está abrangido pelo contrato de seguro de acidentes pessoais dos bombeiros, em que é tomador o Município de O... do H... e seguradora a ora ré, relativo à apólice n° B..., mas sim pela apólice do contrato de acidentes de trabalho, nos termos do qual lhe vem pagando, e isto porque o autor era, à data do acidente, trabalhador subordinado da Associação de Bombeiros, exercendo a actividade de motorista, sendo certo que, enquanto trabalhador remunerado ao serviço daquela Associação, encontrava-se abrangido pelo contrato de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n° 0..., no âmbito do qual a ré já efectuou os pagamentos devidos.

A isto acresce, continua a ré, que o contrato de seguro de acidentes pessoais em apreço exclui do núcleo da sua garantia o autor, enquanto motorista dos quadros da Associação de Bombeiros, atento o disposto na cláusula 1a, b), das condições especiais da apólice n° B..., que titula o contrato em apreço, celebrado entre a ré e o Município de O... do H..., pois tal cláusula afasta do conceito "segurados" os bombeiros, com as categorias ali enumeradas, obrigados por lei a contratar o seguro de acidentes de trabalho, ou seja, faz depender a aplicação desse contrato da circunstância de tais pessoas não serem obrigadas por lei a contratar o seguro de acidentes de trabalho, terminando com o pedido da improcedência da acção.

Na réplica, o autor sustenta que o legislador pretendeu garantir ao bombeiro os direitos advenientes, quer do seguro de acidentes de trabalho, quer do seguro de acidentes pessoais, como reflecte a própria ostensiva cumulação do seguro de acidentes pessoais com a pensão de preço de sangue.

A sentença condenou a ré a pagar ao autor a quantia de setenta e seis mil oitocentos e catorze euros (€76814,00), acrescida de juros legais, actualmente, à taxa de 4%, desde 11 de Outubro de 2006 e até efectivo e integral pagamento, descontados, neste montante, os quantitativos pagos ao abrigo do contrato de seguro por acidente de trabalho.

Desta sentença, o autor e a ré interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedentes ambas as apelações, confirmando a decisão impugnada.

Deste acórdão da Relação de Coimbra, o autor e a ré interpuseram agora recurso de revista, terminando as alegações com a formulação das seguintes conclusões, que, integralmente, se transcrevem: O AUTOR: 1ª – O Tribunal da Relação de Coimbra não apreciou materialmente as normas jurídicas invocadas nem os fundamentos nelas alicerçado, limitando-se a proferir decisão sobre fundamentos parciais de índole formal invocados como a existência ou não de compensação de créditos e a violação do princípio da intangibilidade do caso julgado, olvidando o fundamento principal sobre o qual recaiu a pretensão do recorrente, i. e., a possibilidade de cumulação real e efectiva dos dois contratos de seguros referidos nos autos sem desconto (cfr. conclusão 3ª do recurso de apelação).

  1. – O seguro de acidentes de trabalho é um seguro de coisas, real ou contra danos, porque se destina a cobrir o prejuízo efectivo que dos acidentes pode resultar para o património da entidade patronal, objectivamente responsável pelo ressarcimento referente à redução da capacidade de ganho do seu trabalhador acidentado.

  2. – O seguro de acidentes pessoais é um seguro de pessoas, incidindo sobre a vida, a integridade física ou a situação familiar das pessoas, não tendo natureza indemnizatória, pelo que o valor, o capital, é, normalmente, fixado no início do contrato e não corresponde ao valor real dos danos sofridos pelo lesado, sendo compensatórios de lesões de natureza não patrimonial referentes à vida ou à integridade física em si mesmas e directamente consideradas e não à respectiva repercussão em termos da capacidade de ganho do lesado.

  3. - Ao prever no artº 6º, nº 1 do DL nº 35746 de 12 de Julho de 1946, que os “Municípios procederão obrigatoriamente ao seguro contra acidentes pessoais dos bombeiros profissionais e voluntários previsto na alínea e) do nº 1 do art. 6º da Lei nº 21/87, de 20 de Junho, “desde que aqueles constem dos quadros homologados do Serviço Nacional de Bombeiros, o legislador não pretendeu apenas garantir um mínimo de protecção aos bombeiros, à falta de qualquer outra cobertura infortunística, mas quis efectivamente atribuir o direito cumulativo a cobertura adicional derivada do contrato de seguros por acidentes pessoais, sem que houvesse desconto ou compensação entre ambos os seguros.

  4. – Para que se alcance tal conclusão, basta atender ao facto de aquela obrigação legal dos Municípios valer não só para o caso dos bombeiros voluntários, mas também para bombeiros profissionais, como os sapadores ou os municipais, estes últimos, aliás, expressamente abrangidos na apólice referida nos autos, sendo que, dado o seu vínculo jurídico-administrativo, não se pode defender, em face do actual quadro legal que regula a relação jurídica de emprego público, que os bombeiros sapadores ou os bombeiros municipais não tenham uma cobertura infortunística.

  5. – Sendo inaceitável, ao abrigo do princípio da igualdade, que, admitindo tal cobertura cumulativa adicional para os bombeiros profissionais, o legislador excluísse da referida protecção os bombeiros voluntários quando também assalariados do corpo de bombeiros.

  6. – O seguro múltiplo não é, por si só, ilícito: o artigo 434º do Código Comercial, que apenas se aplica aos seguros reais, proíbe somente que, por força de segundo seguro pelo mesmo tempo e risco de determinado objecto, venha o beneficiário a obter lucros, quando, in casu, os danos cobertos pelos dois seguros não são de natureza idêntica, nem a natureza jurídica dos seguros de acidentes de trabalho e de acidentes pessoais é a mesma.

  7. – Como se refere na nota 6 do acórdão do STJ de 21.04.2009 (Relator Juiz Conselheiro Fonseca Ramos), “Nada impede, como ademais sucede no caso em apreço, que uma mesma pessoas seja a um tempo segurado num seguro de acidentes pessoais e num seguro de acidente de trabalho dada a natureza diferente de um e outro dos seguros, como é geralmente considerado o seguro de acidentes pessoais [os que afectam a vida, a integridade física ou a situação familiar das pessoas seguras] não tem natureza indemnizatória; os seguros de prestação indemnizatória [seguros de danos] são aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro e seguros de prestação convencionada são aqueles cujo conteúdo e montante estão previamente definidos, dependendo apenas a sua realização da verificação de determinado facto”.

  8. – Por força do artigo 35º da Lei nº 100/97, os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas por aquela lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis, não podendo operar a compensação de créditos, ao abrigo do disposto no artigo 853º, nº 1, b) do Código Civil.

  9. – Considerando que o efeito útil do impugnado segmento decisório é a preclusão dos feitos jurisdicionais da sentença do Tribunal do Trabalho de Coimbra junta aos autos que condenou a aqui recorrida ao cumprimento da pensão anual e vitalícia por responsabilidade por acidentes de trabalho, violou a sentença recorrida o princípio da intangibilidade da sentença do Tribunal do Trabalho de Coimbra que se encontra a coberto do disposto no nº 1 do artigo 671º do CPC, segundo o qual a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele, salvo se for objecto de recurso extraordinário de revisão ou de oposição de terceiro.

  10. – O Tribunal de Comarca deveria, pelo exposto na conclusão anterior, in fine, considerar-se materialmente e hierarquicamente incompetente para ordenar a referida compensação de créditos, valoração que o Tribunal da Relação não fez.

  11. – Ao decidir em termos contrários, violou a sentença as normas legais contidas nos artigos 1º do DL nº 36/94, do artigo 28º, nº 1, do DL nº 214/89 e 1º da Portaria nº 35/99, o artigo 434º do Código Comercial, os artigos 405º e 853º, nº 1, b) do Código Civil, o artigo 35º da Lei nº 100/97 e os artigos 66º, 70º e ss., e 671º, nº 1, do CPC, devendo o recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogado o acórdão que confirmou o segmento impugnado da sentença em que se previa o “desconto” das quantias pagas ao autor ao abrigo do contrato de seguro de acidentes de trabalho.

    A RÉ: 1ª – Da interpretação literal do corpo da cláusula que exclui a garantia do seguro de acidentes pessoais no caso de existir contrato de seguro de acidente de trabalho resulta que...

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