Acórdão nº 5845/2004-3 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 23 de Junho de 2004 (caso NULL)
Magistrado Responsável | CLEMENTE LIMA |
Data da Resolução | 23 de Junho de 2004 |
Emissor | Court of Appeal of Lisbon (Portugal) |
Acordam, precedendo conferência, na Relação de Lisboa: I 1.
Nos autos de inquérito n.º 29/03.7S9LSB, com intervenção judicial pelo 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, em que são arguidos S. e J., o Ministério Público determinou que os autos fossem continuados ao Tribunal, com vista à apreciação da questão do levantamento de sigilo das telecomunicações, ponderando nos seguintes [transcritos] termos: «Para apurar o envolvimento dos arguidos na prática de roubo, p. e p. pelo art. 210/2, com referência ao disposto no art. 204/2 al. e), do Código de Processo Penal, é essencial à investigação nestes autos a obtenção, junto da TMN, de facturação detalhada com trace-back e localização celular, relativos ao telemóvel usado pelo arguido S., com o n.° 96.793.23.58 (fls. 86 e 117), no intuito de o situar no local da prática dos factos que constituem objecto de investigação dos inquéritos referidos a fls. 49-53 e 68.
Atenta a confidencialidade dos dados em questão nos termos do disposto nos arts 187, 190 e 269/1 al. c) do Código de Processo Penal e 17/2 da Lei n.° 91/97, de 1.08, e 5 da Lei n.° 69/98, de 28.10, o Ministério Público requer, com carácter de urgência, que se determine o levantamento de sigilo a que está vinculada a TMN, notificando-se a mesma para, no prazo a fixar, proceder à junção aos autos dos elementos indicados no parágrafo que antecede - cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 241/02, DR, II Série, de 23.07.02 e conclusão 2.ª do Parecer n.° 21/2000 do Conselho Consultivo da PGR, a que foi conferida obrigatoriedade de cumprimento ao Ministério Público».
Em sequência, o Tribunal decidiu indeferir o requerido, com fundamento em incompetência do juiz de instrução para a prática do acto requerido, ponderando nos seguintes [transcritos] termos: «Sendo estas as pertinentes disposições legais parece-nos, com o devido respeito por diferente opinião, que é ao Ministério Público a quem compete solicitar a informação pretendida (facturação detalhada), se assim o entender sendo o juiz de instrução incompetente para solicitar a informação pretendida, senão vejamos.
O actual sistema processual penal impõe que o inquérito seja dirigido pelo Ministério Público, em que a lei deixa ao seu critério a escolha dos actos e diligências necessárias à realização da sua finalidade.
Os actos a praticar pelo juiz de instrução estão definidos nos artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, onde não cabe a sindicância ao modo como a investigação é feita. O que fica sujeito à fiscalização judicial é, em princípio, a decisão do Ministério Público proferida no final do inquérito.
O Ministério Público é, enfim «auto suficiente» sendo autoridade judiciária com todos os poderes e prerrogativas (mas também deveres) que tal acarreta.
Contudo, porque o legislador entendeu, no seu prudente critério, que certos actos, por contenderem com direitos fundamentais, só podem ser levados a cabo pela magistratura judicial surge, mesmo em sede de inquérito, a figura do juiz de instrução.
Este, contudo, surge limitado no inquérito no sentido em que só pode exercer as competências estritamente previstas no Código do Processo Penal ao passo que o Ministério Público surge apenas limitado pelo objectivo último que é a decisão final a proferir tendo apenas que observar (aliás em observância ao seu estatuto constitucional) os ditames da lei.
Dito isto há que analisar se o acto requerido cai no âmbito de alguma das situações em que o Código do Processo Penal determina que o juiz de instrução intervenha.
Não está em causa, em concreto, qualquer intercepção de comunicações, vulgo escuta, pelo que é de afastar a intervenção do JIC por esta via.
Outrossim, não está em causa a apreensão de correspondência nos termos do art. 179.º do Código do Processo Penal, bem como não está em causa a realização de uma busca. Como então justificar a intervenção do JIC ? Se bem entendemos a posição do digno magistrado do Ministério Público a intervenção do juiz justificar-se-ia porquanto estaria em causa a eventual violação do segredo de correspondência.
A Constituição, no seu art. 34.º n.
os 1 e 4, consagra a inviolabilidade do domicílio o da correspondência e nesta se incluem todas as espécies de correspondência como todos os meios de telecomunicações, estando aquela inviolabilidade relacionada com o direito à intimidade pessoal (à esfera privada das pessoas), escrevem os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição Anot., ed. Coimbra Editora, 1993, págs. 212 e 213.
Não se questiona que a revelação da facturação vai consentir que se fique a conhecer os postos telefónicos contactados, o dia, a hora e a duração da telecomunicação e pode, outrossim, levar a que, de futuro, se desencadeie a necessidade de intercepções mas, mesmo assim sendo, não se pode dizer que haja uma violação dos arts. 34.º n.º 1 e 4 da CRP.
Aliás, o mesmo se passa com a informações postais onde, estamos em crer o Ministério Público não se faria rogado em solicitar aos CTT que o informassem se determinada carta foi ou não expedida. A situação dos autos é, mutatis mutandis, a mesma.
E só assim se compreende que a lei seja clara ao determinar que, não obstante o regime dos n.
os 1 a 4 da Lei 69/98 supra referidos, o direito das autoridades competentes serem informadas dos dados relativos à facturação ou ao tráfego não seja prejudicado não reservando ao juiz o acesso a tal informação. Ora, a autoridade competente, autoridade judiciária competente é, nesta fase processual, o Ministério Público.
A lei é explícita quanto à definição do acto para cuja prática se carece de autorização do juiz de instrução e que é a intercepção do meio de telecomunicação e conversação que proporciona à distância; ao conteúdo daquela e não a aspectos meramente circunstanciais relacionados com a utilização do posto telefónico.
A facturação, como é bem de ver, não se engloba no conceito legal de telecomunicação, segundo o art. 2.º da Lei 91/97 supra transcrito. Consequentemente, também, a protecção constitucional às telecomunicações, se lhe não estende (neste sentido pode ver-se o Ac. da Rel. Lisboa de 13.01.1999 in C.J. Ano XXIV, t° 1°, 135).
Pelo exposto, e sem necessidade maiores considerações, indefere-se o requerido por incompetência do juiz de instrução para a prática do acto requerido.
Notifique».
-
O Ministério Público, em 1.ª instância, interpôs recurso daquele despacho.
Extrai da correspondente minuta as seguintes [transcritas] conclusões: 1) Em telecomunicações, constituem dados de tráfego aqueles elementos de informação que, inerentes à própria comunicação, permitem identificar a posteriori os intervenientes numa ligação, bem como o local, a data, a hora e a duração.
2) Estes elementos, respeitantes aos utilizadores de serviços de telecomunicações, que se encontrem na disponibilidade dos fornecedores de rede pública e dos prestadores de serviços de telecomunicações de uso público, estão sujeitos ao sigilo das telecomunicações.
3) O sigilo das telecomunicações assegura a integridade da exploração da própria rede de telecomunicações. Nessa medida transcende a mera confidencialidade inerente a um segredo profissional, pressuposto pelo art. 135.º do Código de Processo Penal.
4) A privacidade das comunicações telefónicas ou telemóveis, como corolário da reserva de intimidade da vida privada, abrange a proibição de interferência, em tempo real, de uma chamada telefónica (intercepção por escuta) e a proibição do ulterior acesso de terceiros a elementos que revelem as condições factuais em que decorreu uma comunicação (facturação detalhada).
5) Para efeitos constitucionais são realidades idênticas: os dados de tráfego integram também o núcleo da vida privada que é salvaguardado pela confidencialidade da comunicação e que é objecto de consagração e tutela constitucional, nos arts. 34/1 e 26/1 da Constituição da República Portuguesa.
6) O modo de obtenção em inquérito dos dados revelados por facturação detalhada não resulta de como a legislação sobre telecomunicações perspectiva essa facturação detalhada, mas do modo como a Constituição da República Portuguesa consente na revelação desses dados.
7) A única interpretação conforme à constituição das normas do processo penal quanto à obtenção em inquérito de dados de facturação detalhada, é a que a assimila à obtenção, em processo penal, de prova por intercepção em tempo real de conversações telefónicas, p. nos arts. 187.º e 188.º do Código de Processo Penal.
8) O MM Juiz do Tribunal a quo interpretou o disposto no art. 6.º/5 da Lei n.° 69/98, de 28.10, como remetendo para normas de derrogação de sigilo, p. designadamente no art. 135.º 1/b e 53.º do Código de Processo Penal.
9) O art. 6.º/5 da Lei n.° 69/98, de 28.10, não opera remissão para as indicadas normas do Código de Processo Penal.
10) O MM Juiz do Tribunal a quo aplicou aos arts. 17.º, 269.º do Código de Processo Penal, no sentido de que o Juiz de Instrução Criminal não tem competência para ordenar a junção aos autos de facturação detalhada de...
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