Acórdão nº 0111584 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 31 de Maio de 2006 (caso NULL)

Data31 Maio 2006
ÓrgãoCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação do Porto.

  1. RELATÓRIO 1.- Na instrução n.º …/2000 do ..º Juízo Criminal do Tribunal de Santa Maria da Feira, em que são: Recorrente/Assistente: B………. .

Recorrido: Ministério Público Recorridos/Arguidos: C………. .

foi proferido despacho de não pronúncia a fls. 258-261 e datado de 2001/Set./27, relativamente a um crime de devassa por meio de informática p. e p. pelo art. 183.º do Código Penal que o assistente imputa ao arguido e que no decurso do inquérito já tinha merecido um despacho de arquivamento por parte do Ministério Público.

  1. - O assistente, não se conformando com aquela decisão, interpôs recurso da mesma a fls. 269-274 (2001/Out./12), em virtude de, no seu entender, os autos indiciarem que o arguido cometeu tal ilícito criminal, pugnando que o mesmo seja pronunciado pela sua prática, apresentando as conclusões que se passam a transcrever: 1.ª) Dos autos resulta que o arguido, desde Janeiro de 1996, nas instalações da fábrica de calçado pertencente à firma "D………., Lda.", criou, utilizou e continua a utilizar um ficheiro automatizado de dados pessoais referentes aos seus trabalhadores, entre os quais o assistente.

    1. ) O referido sistema é activado por cada um dos trabalhadores, entre eles o assistente, através de um cartão magnético de uso pessoal que permite a identificação do seu titular. Com a utilização do referido sistema o assistente sabe rigorosamente a que horas é que cada um dos seus trabalhadores entrou no quarto de banho para satisfazer as suas necessidades fisiológicas, quanto tempo aí passou e a que horas é que daí saiu.

    2. ) Durante o inquérito, o arguido faltou à verdade quanto á finalidade da utilização do referido sistema e quanto à forma da sua utilização porque estava consciente de que o sistema informático existente na empresa era ilegal.

    3. ) Poderá também presumir-se que tal sistema nunca teria sido registado caso a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados tivesse tomado conhecimento da sua verdadeira utilização e finalidade.

    4. ) As regras da experiência e os juízos de normalidade daí decorrentes (que nada têm a ver com a "lógica" referida na sentença) mostram-nos que os quartos de banho foram criados para que as pessoas possam satisfazer as suas necessidades fisiológicas - mais concretamente: urinar, defecar, tratar da higiene intima - de uma forma recatada, isolada e com condições de higiene.

    5. ) As mesmas regras de experiência dizem-nos que a esmagadora maioria das pessoas utiliza os quartos de banho para satisfazer as suas necessidades fisiológicas e não para qualquer outro fim, designadamente para "... fumar, conversar, descansar, comer, etc." 7.ª) Na ausência de qualquer prova em contrário que demonstre uma utilização anormal do espaço, isto é, contrária às regras da experiência, terá de presumir-se que o tempo que as pessoas passam no interior de uma casa de banho diz respeito à sua vida privada. E por isso tal período de tempo não deverá ser controlável. Exigir-se que se saiba o que de concreto lá se passou para que se possa afirmar que tal período de tempo diz respeito à vida privada dos seus utilizadores é um critério inaceitável porque é em si mesmo violador da privacidade dos utilizadores.

    6. ) A decisão recorrida avaliou incorrectamente os factos indiciados nos autos. O tempo que as pessoas despendem nos quartos de banho não pode ser objecto de registo informático porque diz respeito à vida privada dos utilizadores.

    7. ) O Senhor Procurador junto do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, numa situação precisamente análoga àquela que se discute nos presentes autos, que "o referido controlo informático constitui um atentado à vida privada e à dignidade da pessoa humana".

    8. ) O tempo que uma pessoa despende diariamente na casa de banho pode ser revelador de aspectos característicos do funcionamento do seu próprio corpo e isso é absolutamente íntimo e não registável.

    9. ) O arguido age com dolo 12.ª) Se se soubesse o que se estava a passar dentro das casas de banho não estaríamos apenas perante o problema da "devassa por meio de informática" (art. 193° Código Penal) mas também perante um crime de "devassa da vida privada" (art. 192° do Código Penal). Haveria neste caso um claro concurso de infracções.

    10. ) Estão totalmente indiciados os elementos do tipo legal de crime de devassa por meio de informática, previsto e punido pelo artigo 193.° do Código Penal.

    11. ) O arguido criou, mantém e utiliza na sua fábrica de calçado, desde Janeiro de 1996, um ficheiro automatizado de dados individualmente Identificáveis referentes à vida privada dos seus trabalhadores, designadamente acerca do tempo que estes despendem nos sanitários da empresa a satisfazerem as suas necessidades fisiológicas.

    15.º) A decisão recorrida viola o disposto nas seguintes disposições legais: art. 193.º, do Código Penal; art. 308.º, 286.°, n.º, 1, do Código de Processo Penal; art. 80.º do Código Civil; art. 26.º, 1, da Constituição da República Portuguesa.

  2. - O arguido respondeu a fls. 279-282, insurgindo-se contra tal recurso e a imputação que lhe é feita no mesmo, apresentando, para o efeito, as seguintes conclusões: 1.ª) O ficheiro informatizado existente na empresa "D………., LDA", de que o recorrido é sócio gerente, está devidamente registado na C.N.P.D.P.I.

    1. ) A C.N.P.D.P.I., analisou no local quer o sistema quer os dados objecto de tratamento, os quais não sofreram quaisquer alterações desde 1997.

    2. ) Conhecedora dos factos e de toda a situação em pormenor, a C.N.P.D. aprovou e registou o dito ficheiro.

    3. ) Tal sistema tem como objectivo controlar o tempo de trabalho efectivo, sendo registáveis todas as interrupções de trabalho por iniciativa do trabalhador.

    4. ) A empresa ou o recorrido não controlam a vida privada do recorrente ou de qualquer trabalhador, nem isso lhe interessa ou pode interessar.

    5. ) De qualquer modo, sempre seria impossível esse controlo, já que, após o registo de interrupção, o recorrido não tem como saber onde é que o recorrente tenha ido (casa de banho, balneários, refeitório) visto que a porta de acesso é a mesma onde se localiza o insersor.

    6. ) Mas mesmo que fosse possível apurar que o recorrente ia ao quarto de banho (e não é) sempre seria impossível controlar o tipo de actividade que o mesmo lá foi fazer.

    7. ) E de tal maneira assim é que poderia acontecer a ida ao quarto de banho, exactamente para não fazer nada, porque é dos poucos sítios da empresa onde não é possível o controlo.

    8. ) E sempre assim acontece desde 1996.

    9. ) O recorrido sempre respeitou e cumpriu a Lei, nomeadamente as regras contidas na Lei 67/98.

    10. ) Pelo que não pode o recorrido, cumprindo a Lei, ser incriminado.

    11. ) E não pode (nem devia) o recorrente servir-se dos Tribunais para atingir fins eminentemente politico-sindicais.

  3. - O Ministério Público também contra alegou a fls. 284-287, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, porquanto no seu entender, e em suma, o sistema instalado na referida fábrica visa apenas controlar os lapsos de tempo que o trabalhador passa sem efectivamente exercer qualquer actividade laboral, não havendo, por isso, qualquer devassa da vida privada do mesmo por se proceder ao registo informatizado de tais lapsos de tempo.

    Nesta Relação o ilustre Procurador-Geral Adjunto dissentiu deste entendimento e emitiu parecer no sentido de que o assistente tem toda a razão.

  4. - Cumpriu-se o disposto no art. 417.º, n.º 2 do C. P. Penal, tendo o arguido respondido a este parecer, mantendo, no essencial, tudo aquilo que já tinha antes expendido.

  5. - Após uma nova redistribuição do processo em 2005/Nov./30, colheram-se novos vistos legais, nada obstando ao conhecimento do mérito.

    * * *II.- FUNDAMENTOS.

  6. - A DECISÃO RECORRIDA.

    Na parte que aqui interessa e que está essencialmente impugnada, foi decidido nos termos que se passam a transcrever: "Estabelece o art. 308.º do CPP que "se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia".

    Por sua vez o art. 283.º, n.º 2 refere que: "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".

    Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolacção de despacho de pronuncia ou de não pronuncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se poder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

    Em sede de instrução as testemunhas vieram referir unanimemente que: - cada vez que vão à casa de banho têm de utilizar um cartão magnético que acciona o sistema acima referido.

    - tal sistema foi introduzido em 1996 e alargado em 1999 a quaisquer paragens da actividade produtiva imputáveis ao trabalhador; - Os trabalhadores podem gastar 15 minutos, depois alargados a 30 minutos e depois a uma hora, por mês, para além do intervalo diário de 10 minutos a meio da manhã, para deslocações à casa de banho. Se excederem esse tempo pode ser-lhes descontada determinada quantia no prémio de...

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