Acórdão nº 0212122 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 15 de Setembro de 2004

Magistrado ResponsávelMARQUES SALGUEIRO
Data da Resolução15 de Setembro de 2004
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam na Relação do Porto: No Proc. Comum Singular nº ../.., do Tribunal Judicial da Comarca de....., o arguido B....., com os sinais dos autos, foi condenado: a) pela prática, em autoria material e na forma consumada, a título de negligência, de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p. pelos artº 148°, n° 1 e 3, com referência ao art° 144°, al. b), e 69°, n° 1, al. a), do C. Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão e na sanção acessória de inibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 8 (oito) meses; e b) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art° 200°, n° 1 e 2, e 69°, n° 1, al. b), do C. Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão e na sanção acessória de inibição de condução de veículos automóveis pelo período de 4 (quatro) meses.

E, operando o cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão e o cúmulo material das penas acessórias acima referidas, foi o arguido condenado na pena única de 15 (quinze) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, e na sanção acessória de inibição de condução de veículos automóveis pelo período de 12 (doze) meses.

///Inconformado, interpôs recurso o arguido, concluindo a sua motivação nestes termos: A.

Quanto ao crime de ofensa à integridade física por negligência: l. O Tribunal julgou incorrectamente ao dar com assente a matéria de facto constante dos nº 4, 5 e 6 da douta sentença recorrida.

  1. A prova em audiência revela que o arguido observou as regras rodoviárias que, nas circunstâncias, seriam exigíveis. Efectivamente, o arguido pretendendo efectuar a manobra de mudança de direcção à esquerda, aproximou-se do eixo da via, sinalizou com sinal luminoso intermitente que o pretendia fazer, parou, verificou se circulava algum veículo em sentido contrário e, perante o facto de a via se encontrar livre, completou a manobra.

  2. O facto de não se ter apercebido do ciclomotor, nem de qualquer indício nesse sentido, como seria o caso de projecção de luzes, ficou a dever-se à circunstância de o local apresentar características que limitam o campo de visão recíproca (do veículo que se desloca no sentido N/S para o entroncamento onde se verificou o embate - sentido de marcha do ciclomotor - e do veículo que se desloca no sentido S/N para a curva existente a cerca de 30 metros, marginada por edificações).

  3. Tais características do local impõem seguramente especiais deveres de cuidado que, no caso concreto, vinculam necessariamente ambos os condutores. No entanto, se bem dispomos de factos que nos permitem afirmar que o condutor do veículo automóvel procedeu com a diligência normal que lhe seria exigível, atentas as características do local, o mesmo não se pode afirmar relativamente ao condutor do ciclomotor, já que o mesmo revelou pouco ou nada se lembrar relativamente à dinâmica do acidente, apenas afirmando convictamente que seguia com as luzes acesas e que o local é iluminado (factos que certamente lhe aproveitam, mas que, por si só, são insuficientes para firmar a convicção do tribunal sobre a adequação do respectivo exercício da condução, atentas as características do local).

  4. Face à ausência de dados que permitam concluir da adequação do exercício da condução do ciclomotor às características do local, necessário se torna recorrer a elementos concretos que permitam preencher e enquadrar tal ausência.

  5. No caso, dá-se como provado que, a 30 metros do entroncamento, existe uma curva. Mais se apurou em julgamento, como decorre da transcrição da prova gravada, que, no local da curva - atento o sentido de marcha do ciclomotor - existem edificações relativamente às quais apenas existe cerca de 0,5 metro a l metro de berma, não existindo passeio para peões. Tal configuração do traçado da via e envolvente retiram a visibilidade para o entroncamento ao veículo que circula em sentido N/S (o ciclomotor) e vice-versa.

  6. Para além disso, para se apurar da visibilidade recíproca, no sentido de a classificar como boa ou reduzida, parece judicioso que o Tribunal recorra, face à disparidade de opiniões manifestadas nos depoimentos sobre o assunto, à classificação existente no Código da Estrada a tal propósito, onde se escreve, no artigo 23°, o seguinte: "(...) considera-se que a visibilidade é reduzida ou insuficiente sempre que o condutor não possa avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos 50 m". Verificando-se no caso vertente tal condicionante, a mesma deveria ser valorada neste sentido pelo tribunal.

  7. Dá-se ainda como provado que o ciclomotor circulava a velocidade não superior a 50 Km/h. Ora, considerando as características do local no sentido de marcha do ciclomotor, a respectiva velocidade deveria ser especialmente moderada, como preconiza o Código da Estrada que assim seja em locais que apresentem configuração como a deste local em concreto (cfr. art° 25°, al. c) e f), do citado CE).

  8. Para além disso, é ainda pertinente constatar que, por razões relativas à segurança do condutor e à possibilidade de domínio de um ciclomotor perante situações inesperadas, o Código da Estrada classifica ciclomotor como sendo o "veículo dotado de duas ou três rodas cuja velocidade não exceda, em patamar e por construção, 45 Km/h" (art° 107, do CE), ou seja, é legítimo concluir que o ciclomotor circulava no limite máximo das suas "capacidades" de segurança e, em consequência, em acentuado risco para a segurança rodoviária.

  9. Resulta também da prova produzida em audiência e que o tribunal não considerou como facto provado, como deveria, que, embora o embate se tenha verificado ainda na Rua X....., o veículo automóvel já tinha transposto praticamente toda a via (e que necessariamente tinha que transpor para efectuar a manobra de mudança de direcção à esquerda), encontrando-se já com a frente na Rua Y..... e com apenas cerca de 50 cm da respectiva traseira ainda na Rua X......

  10. Anote-se ainda que o tempo necessário para percorrer, a uma velocidade de 50 Km/h, a distância de 30 metros (a dada como provada entre a curva e o entroncamento) é de apenas 2,2 segundos, ou seja, é ínfimo o tempo de possibilidade de reacção a um qualquer obstáculo que "surge repentinamente", ainda mais não havendo visibilidade suficiente e atendendo às condicionantes de segurança que (não) oferece um ciclomotor.

  11. Por último, para avaliar da adequação do exercício da condução do ciclomotor às características do local, registe-se que, quer o agente da PSP, quer o assistente, confirmam que, naquelas circunstâncias, haverá tempo para reagir a um possível obstáculo que surja na zona do entroncamento, evitando-se provavelmente o embate, desde que o veículo que circula em sentido N/S (neste caso, o ciclomotor) não circule em excesso de velocidade.

  12. Nestes termos, subsistem dúvidas consistentes sobre a dinâmica de produção do acidente, mormente sobre a adequação da condução do ciclomotor às circunstâncias de lugar, considerando as especiais características do local que o tribunal "a quo" não valorou ou valorou insuficientemente (face à prova produzida em audiência de julgamento).

  13. Tais dúvidas não permitem concluir, como se conclui na sentença recorrida, que o assistente nada tenha podido fazer para evitar a colisão.

  14. Também não se pode afirmar, como se demonstrou, que o arguido tenha violado algum dever objectivo de cuidado ao efectuar a manobra de mudança de direcção à esquerda, pois que, como resulta da análise dos diversos depoimentos, agiu no respeito pelas regras de circulação rodoviária, atenção e diligência que lhe seriam exigíveis naquelas circunstâncias.

  15. Ao não valorar a prova com recurso a critérios objectivos e às regras da experiência, o que imporia um julgamento diverso da matéria de facto, entende a defesa que a convicção do tribunal não é racionalmente motivável, pelo que o tribunal violou o artº 127° do C. P. Penal.

  16. Ao não afastar toda a dúvida razoável, como se demonstrou, e ao condenar o arguido pelo crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, o tribunal afastou a aplicação do princípio do "in dubio pro reo", violando o artº 32°, n° 2, da C.R.P.

  17. Em conclusão, os factos constantes dos n° 4, 5 e 6 da matéria de facto dada como assente na douta sentença, devem ser dados como não provados.

  18. Devendo, em consequência, a sentença ser revogada e o arguido absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, agravada pelo resultado.

    B - Quanto ao crime de omissão de auxílio: 20. O crime de omissão de auxílio não é um crime de perigo abstracto, puramente formal, que abstraia das concretas condições em que são abandonadas as vítimas e que se baste com a mera conduta omissiva do agente.

  19. Trata-se de um crime de perigo concreto, na medida em que exige a efectiva verificação de perigo para a vida, bem jurídico ali tutelado, ou seja, a conduta do agente tem que colocar efectivamente em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade da vítima.

  20. Ora, para se decidir acerca do concreto perigo que a conduta do agente cria para a vida da vítima, importa analisar, de um ponto de vista objectivo, se a conduta do agente seria ou não idónea a afastar o perigo, conclusão que se extrai do segmento da norma "deixar de prestar o auxílio necessário ao afastamento do...

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