Acórdão nº 1229/06.3TTCBR.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Setembro de 2010

Magistrado ResponsávelMÁRIO PEREIRA
Data da Resolução29 de Setembro de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : I - A noção de justa causa de despedimento exige a verificação, cumulativa, de dois requisitos: um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, violador de deveres de conduta ou de valores inerentes à disciplina laboral, grave em si mesmo e nas suas consequências; que esse comportamento torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral.

II - Existe a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação laboral quando ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar, no espírito da primeira, a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral.

III - Na apreciação da gravidade da culpa e das suas consequências, deve recorrer-se ao entendimento do “bom pai de família”, de um “empregador razoável”, segundo critérios objectivos e razoáveis, em face do circunstancialismo concreto, devendo atender-se, “no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes”, como estabelece o nº 2 do art. 396.º do Código do Trabalho de 2003.

IV - O dever de lealdade tem um alcance normativo que supera os limites do sigilo e da não concorrência, impondo aos trabalhador que aja, nas relações com o empregador, com franqueza, honestidade e probidade, em consonância, aliás, com a boa fé que deve presidir à execução do contrato, estando-lhe vedado, nomeadamente, comportamentos que determinem situações de perigo para o empregador ou para a organização da empresa, por um lado, e, por outro, impondo-lhe que tome as atitudes necessárias quando constate uma ameaça de prejuízo.

V - É de afirmar a justa causa de despedimento quando está demonstrado que a trabalhadora – Chefe de Serviço Administrativo e com acesso às contas bancárias da empregadora – não acatando as determinações e procedimentos próprios determinados pela empregadora quanto ao fecho de caixas do estabelecimento, procedeu, e determinou a suas subalternas que procedessem, à troca de valores em numerário por cheques pessoais do Director da Loja, em transacções que em nada se relacionavam com o exercício das funções daquele ou com qualquer situação do interesse da empregadora.

VI - Esse comportamento consubstancia uma actuação desleal e desonesta, em si mesma, relevante no quadro dessa justa causa, independentemente de se saber se a empregadora sofreu efectivos e concretos prejuízos ou se a trabalhadora obteve benefícios pessoais.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I.

A autora AA intentou, em 8 de Novembro de 2006, a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra a ré BB – ... Portugal, S.A.”, pedindo que seja declarada a ilicitude do seu despedimento e, por isso, a R. condenada a: a) Reintegrá-la ou, caso esta venha a optar pela indemnização, pagar-lhe quantia não inferior a 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano de antiguidade; b) Pagar-lhe, a título de danos morais, a quantia de € 10.000,00; c) Pagar-lhe o montante de € 6.008,48, referente ao trabalho suplementar prestado em dia de descanso complementar, no ano de 2003; d) Pagar-lhe o montante de € 2.173,28, pelo trabalho prestado aos Domingos nos anos de 2003 e 2004; e) Pagar-lhe o montante de € 2.556,80, referente ao trabalho suplementar prestado em dia de descanso complementar no ano de 2004; f) Pagar-lhe o montante de € 42.642,83, referente ao trabalho suplementar prestado diariamente nos anos de 2003 e 2004; g) Pagar-lhe todas as prestações salariais que se vençam desde os 30 dias anteriores à data da propositura da acção, estando vencida a importância de € 1.385,00; h) Pagar-lhe juros sobre todas as quantias em dívida, desde a citação; i) Pagar custas, procuradoria e demais de lei; j) A título de sanção pecuniária compulsória, e para a hipótese de a autora optar pela reintegração, pagar-lhe a quantia de € 500,00 por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de reintegrar.

Para tanto, alegou, em síntese, que: - Sendo empregada da R. desde 1992, ultimamente com as funções de Chefe de Serviço Administrativo no estabelecimento de Leiria, recebeu uma primeira nota de culpa em que era acusada de colaborar com a troca de numerário das caixas por cheques pessoais do seu Director de Loja, de ter continuado tal prática mesmo depois da saída do mesmo Director e de manter na sua secretária um cheque de cliente que, entretanto, já havia pago o respectivo montante; - A A. respondeu a tal nota de culpa, adiantando, fundamentalmente, ter obedecido às ordens do seu superior hierárquico, não ter existido prejuízo patrimonial para a ré e estar o cheque da cliente a aguardar que a mesma passasse pela loja para que lhe fosse entregue; - A R. veio a fazer um aditamento à nota de culpa, em que acusou a A. de dar ordens às supervisoras de caixa para não depositarem o dinheiro existente no cofre da empresa de transporte de valores, enquanto não fosse feita a troca do numerário pelo cheque do Director de Loja, bem como de ter promovido as referidas supervisoras a essas funções sem a necessária formação; - A A. respondeu invocando a caducidade do procedimento por estes novos factos, a sua conclusividade, a inexistência, à data, das normas internas que se dizem violadas e a actuação (sempre) em obediência ao seu superior hierárquico; - A decisão de despedimento, a final do processo disciplinar, foi ilegal, injusta e infamante e causou à A. danos não patrimoniais passíveis de indemnização não inferior a 10.000,00 euros, bem como danos patrimoniais; - Prestou trabalho suplementar à R. que esta não pagou, ficando a dever-lhe um total de € 42.642,83.

A R. contestou, pedindo a improcedência da acção, por não provada, considerando-se lícito o despedimento da A., porque com justa causa, devendo a R. ser absolvida dos pedidos, alegando para tanto, em síntese, que: - O aditamento à nota de culpa, porque incide sobre factos cujo conhecimento pela R. foi superveniente (só durante as diligências instrutórias), não se mostra ferido de caducidade; - A demora na notificação à A. do aditamento à nota de culpa é imputável a ela própria, por ter mudado de residência sem comunicação, não podendo a mesma prevalecer-se de tal situação que criou, sob pena de abuso de direito; - Os comportamentos da A. foram de tal modo graves, que esta não se pode escudar na falta de consciência de tal gravidade nem na obediência devida ao seu superior hierárquico; - Além disso, a A. continuou a fazer a troca de cheques do referido Director de Loja, mesmo quando este deixou de ser seu superior hierárquico, quando foi chefiar outra loja da R.; - A A. violou também, de forma grosseira, os procedimentos determinados pela R., ao manter na sua secretária o cheque da cliente cuja quantia já havia sido paga por outros meios; - Os comportamentos da A. consubstanciam, assim, a violação dos deveres profissionais de zelo, lealdade e custódia, de forma reiterada, de tal forma que se tornou impossível a subsistência da relação de trabalho, por quebra irremediável da confiança nela depositada, estando, assim, configurada uma situação de justa causa de despedimento; - A A. não tem direito ao pagamento de qualquer trabalho suplementar, designadamente porque a mesma anuiu prestar o seu trabalho no regime de isenção de horário de trabalho.

Realizada a audiência de julgamento, com gravação da prova produzida, foi proferida sentença, que, julgando parcialmente procedente a acção e ilícito o despedimento da A., decidiu condenar a R. a: “a) reintegrar a autora no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria ou antiguidade; b) pagar à autora, a título de danos morais, a quantia de 5.000,00 euros; c) pagar à autora o montante de 6.008,48 euros, referente ao trabalho suplementar prestado em dias de descanso complementar, no ano de 2003; d) pagar à autora o montante de 2.556,80 euros, referente ao trabalho suplementar prestado em dia de descanso complementar no ano de 2004; e) pagar à autora todas as prestações salariais vencidas e vincendas desde os 30 dias anteriores à data da propositura da acção até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal, estando vencida a importância de 28.295,55 euros; f) pagar à autora juros moratórios (à taxa supletiva estabelecida ao abrigo do nº 1 do artigo 559º do Código Civil para as obrigações meramente civis) desde a citação, sobre as quantias em dívida à data da citação, e desde o seu vencimento, sobre as quantias vencidas posteriormente; g) a título de sanção pecuniária compulsória, pagar a quantia diária de 120,00 euros por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de reintegrar”.

Inconformada, a R. arguiu nulidades da sentença e interpôs recurso de apelação da mesma, pedindo a sua revogação.

A A. interpôs recurso subordinado, impugnando a decisão da matéria de facto e pedindo a alteração da sentença na parte referente ao trabalho suplementar.

Contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado, no restante.

Por seu douto acórdão, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu não se verificarem as invocadas nulidades da sentença; julgou procedente a apelação da R., considerando haver justa causa de despedimento e, revogando a sentença na parte por ela impugnada, absolveu-a dos pedidos correspondentes (als. a), b), e) e g) do dispositivo da sentença de 1ª instância) e julgou improcedente o recurso subordinado da A., confirmando a sentença nessa parte.

II.

Do acórdão interpôs a A. a presente revista, em que formulou as seguintes conclusões: 1ª. O recurso interposto pela R. não põe em causa a matéria de facto dada como provada, circunscrevendo-se apenas à matéria de direito 2ª. Assim o primeiro argumento utilizado refere...

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