Acórdão nº 201/10 de Tribunal Constitucional (Port, 25 de Maio de 2010

Magistrado ResponsávelCons. Jos
Data da Resolução25 de Maio de 2010
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 201/2010

Processo n.º 904/08

  1. Secção

Relator: Conselheiro José Borges Soeiro

(Conselheiro Pamplona de Oliveira)

Acordam, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

  1. A. foi condenado no 1.º Juízo de Tribunal Judicial de Torres Novas como autor material, em concurso real, de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º e 131.º do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 275.º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 207-A/75 de 17 de Abril, na pena de três anos de prisão. Efectuado o cúmulo jurídico foi condenado na pena única de cinco anos de prisão.

    Transitada em julgado a decisão condenatória, A. solicitou a reabertura da audiência, para aplicação retroactiva da lei mais favorável, ao abrigo do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal e do artigo 50.º do Código Penal.

    O Ministério Público declarou nada ter a opor. Todavia, por despacho proferido em 6 de Outubro de 2008 foi decidido não aplicar a norma do artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal, com fundamento em inconstitucionalidade, por violar o caso julgado protegido nos artigos 2.º, 111.º, n.º 1, 205.º, n.º 2 e 282.º, n.º 3 da Constituição. Considerou-se que a decisão anteriormente proferida e já transitada ficaria parcialmente sem efeito, obrigando a que o Tribunal procedesse a nova ponderação da situação do arguido, alterando consequentemente tal decisão, com inadmissível prejuízo da garantia de certeza e segurança jurídica que são características do Estado de Direito.

    Diz-se na decisão:

    “[…] Na verdade nós recusamo-nos a aplicar o disposto no artigo 371°-A, do Código de Processo Penal, na medida em que consideramos que a norma em causa é inconstitucional, por violar manifestamente o caso julgado de uma decisão anterior.

    Na realidade, a protecção e o respeito pelo caso julgado encontram-se consagrados na Constituição, designadamente nos artigos 2°, 111°, n°1, 205°, n°2, e 282°, n°3. Aquele artigo 371º-A veio manifestamente pôr em causa o caso julgado e violar estas normas constitucionais.

    De facto, o que aquele artigo 371 °-A determina é que a decisão anterior proferida no processo, que entretanto transitou em julgado, ficará parcialmente sem efeito, obrigando a que o Tribunal volte a ponderar a situação do arguido e proceda à alteração daquela. Consequentemente, qualquer decisão judicial, que transitou em julgado, deixa de ter eficácia em definitivo, podendo assim ser alterada a todo o tempo, bastando para o efeito que entre em vigor um regime que se mostra mais favorável ao arguido.

    Ora, com o caso julgado de uma determinada decisão pretende-se que a mesma permaneça tendencialmente imutável. Só dessa forma haverá uma garantia de certeza e segurança jurídica e de paz judicial em relação àquela questão pois a mesma foi decidida em definitivo.

    Pelo contrário a possibilidade de a todo o tempo uma decisão judicial poder ser modificada, bastante para o efeito que seja alterada a Lei que regula a situação em causa, provoca grande instabilidade e incerteza quanto à resolução da questão. Consequentemente, o não respeito pela decisão transitada em julgado cria uma enorme perturbação na ordem das decisões judiciais. A certeza, a paz judicial e a segurança jurídicas que são trazidas pelo caso julgado, e que são apanágio de um Estado Constitucional de Direito, são postas em causa pela possibilidade de poder ser modificada a decisão transitada a todo o tempo, que resulta daquele artigo 371°-A [...].

    Deste modo, declarar-se que não se irá aplicar ao caso concreto a norma do artigo 371°-A, do Código de Processo Penal, na medida em que se considera a mesma inconstitucional pelas razões já expostas supra. [...]”

  2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), nos seguintes termos:

    “A Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal, com a legitimidade que lhe conferida pelo artigo 1.º, 3.°, n.° 1, al. f) e o) e n.° 2 in fine do Estatuto do Ministério Público, não se conformando com o despacho exarado a fls. 414 a 415 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° 191/04.1PATNV referenciados em epígrafe, na parte em que recusou a aplicação da norma ínsita no artigo 371.°-A do Código de Processo Penal por considerar que a mesma é inconstitucional por violar o caso julgado formado sobre uma decisão anterior, dele vem interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 204.°, 219.° n.° 1, 223.°, n.° 1 e 280.°, n.° 1, alínea a) e n.° 3 da Constituição da República Portuguesa e 70.°, n.° 1, alínea a) e 72.°, n.° 1, al. a) e n.º 3 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional. (…)”

  3. O recurso foi admitido. Já no Tribunal Constitucional as partes foram convidadas a alegar. Na sua alegação, o Ministério Público recorrente louva-se na jurisprudência do Tribunal, invocando que situação idêntica foi já tratada nos processos n.ºs 1042/07 (3.ª Secção), 121/08 (1.ª Secção) e 283/08 (3.ª Secção), onde foram proferidos os Acórdãos n.ºs 164/2008, 265/2008 e a Decisão Sumária n.º 138/2008, que não julgaram inconstitucional a norma constante do artigo 371º-A do Código de Processo Penal.

    Diz, em suma, o Ministério Público:

    “(…) 1.2. Está-se perante uma situação idêntica à que foi apreciada nos processos nºs 1042/07-3ª Secção, 121/08-1ª Secção e 283/08-3ª Secção onde, respectivamente, foram proferidos os Acórdãos nºs 164/2008, 265/2008 e a decisão sumária nº 138/2008, que não julgaram inconstitucional, a norma constante do artigo 371°-A do Código de Processo Penal.

    1.3. Remete-se, assim, para esta jurisprudência (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) que vem entendendo que o caso julgado não pode sobrepor-se ao princípio da aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável, consagrado no artigo 29°, n° 4 da Constituição.

  4. Conclusão

    Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:

  5. O princípio da aplicação retroactiva do regime penal de conteúdo mais favorável ao arguido, no caso de sucessão de leis penais no tempo, consagra valores constitucionais superiores aos que são garantidos pelo princípio da intangibilidade do caso julgado, que deverá ceder perante aquele.

  6. Não sendo inconstitucional a norma do artigo 371°-A, do Código de Processo Penal, cuja aplicação foi recusada, deverá proceder o presente recurso, não se confirmando o juízo de desconformidade à Lei Fundamental constante da decisão recorrida.”

  7. O Recorrido não contra-alegou, cumprindo apreciar e decidir.

    II – Fundamentação

  8. Em primeiro lugar, impõe-se precisar o objecto do presente recurso, uma vez que o Ministério Público interpôs recurso da decisão na parte em que recusou a aplicação da norma ínsita no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, por considerar que a mesma é inconstitucional.

    Sucede que, conforme jurisprudência consolidada neste Tribunal, apenas pode conhecer-se das normas que hajam sido efectivamente aplicadas ou desaplicadas – como é agora o caso – por parte do tribunal a quo. Da análise da fundamentação da decisão recorrida, resulta que a norma desaplicada é a que determina a reabertura de audiência para aplicação de um novo regime penal mais favorável, no que respeita à suspensão de execução da pena de prisão aplicada, nos termos do disposto no artigo 50.º, nº. 1 do Código Penal, pois só essa questão estava concretamente em causa.

    É, portanto, esta a dimensão normativa do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal que constitui objecto de recurso.

  9. Tal como alega o Ministério Público, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre questão relacionada com o artigo 371.º-A do Código de Processo Penal nos Acórdãos n.ºs 164/2008, 265/2008 e na Decisão Sumária n.º 138/2008.

    No primeiro caso, (Acórdão n.º 164/2008) a questão relacionava-se com a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da liberdade.

    Ali se referiu:

    “ […] Em traços largos, e tendo em consideração a diferença de redacção do n.º 4 do artigo 2º do CP, antes e após a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, parece que o legislador quis deixar bem claro que o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ocorre “sempre”, haja ou não condenação com força de caso julgado formado sobre a questão jurídico-penal controvertida.

    Posto isto, no que diz respeito às acções penais em que já exista condenação transitada em julgado, o legislador gizou um sistema dual e articulado que pressupõe: i) por um lado, a aplicação automática da ‘lex mitior’, mediante a cessação instantânea da execução da pena privativa de liberdade, quando, tendo a nova lei penal de conteúdo mais favorável envolvido uma diminuição do limite máximo previsto na moldura abstracta, o agente já tenha cumprido a pena correspondente a esse limite (cfr. artigo 2º, n.º 4, ‘in fine’, do CP); ii) por outro lado, a necessidade de reabertura da audiência, nos restantes casos, para efeitos de aplicação de lei penal de conteúdo mais favorável quando o arguido ainda não tenha cumprido o novo limite máximo da pena de prisão aplicável ao crime em causa (cfr. artigo 371º-A do CPP).

    […] De acordo com a jurisprudência deste Tribunal sobre a constitucionalidade do n.º 4 do artigo 2º do CP (na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro) se admite a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável se sobreponha ao caso julgado penal: (i) quando está em causa uma mudança ‘qualitativa’ da pena...

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