Acórdão nº 149/08.1TAVGS.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 30 de Junho de 2010

Magistrado ResponsávelPAULO GUERRA
Data da Resolução30 de Junho de 2010
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I - RELATÓRIO 1.

No processo comum singular n.º 149/08.1TAVGS do Juízo de Média Instância Criminal de Vagos, na comarca do Baixo Vouga, por despacho de 9 de Fevereiro de 2010, foi rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J...

, devidamente identificado nos autos, na qual lhe era imputada a prática de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b) do C.Penal.

2.

Inconformado, o Ministério Público recorreu deste despacho proferido nos termos do artigo 311º do CPP, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «1. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido J... imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.

  1. Por douto despacho de fls. 166 a 171, a Mma. Juiz a quo rejeitou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público por manifestamente infundada.

  2. Decorre dos elementos carreados para os presentes autos que na sentença proferida nos autos de Processo Especial Sumário n.° 46/08.00AVGS, foi cominado com o crime de desobediência a falta da entrega da carta de condução pelo arguido, no prazo de dez dias após o trânsito, o qual ocorreu em 07/03/2008.

  3. Com o trânsito em julgado da sentença dos autos de Processo Especial Sumário n.° 46/08.OGAVGS, consolidaram-se na Ordem Jurídica todos os efeitos penais dali decorrentes, nos termos do artigo 467°, n.° 1, do Código de Processo Penal.

  4. Não devia o Tribunal considerar não ser legítima nem emanar de autoridade competente aquela cominação com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art. 348°, n.° 1, alínea b), do Código Penal, pela falta de entrega da carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito.

  5. Não será de efectuar uma interpretação minimalista do artigo 348°, n.° 1, alínea b) do Código Penal, pois, caso contrário, estar-se-ia a esvaziar a norma nos casos em que a advertência é feita, como o foi na sentença condenatória proferida no Processo Especial Sumário n.° 46/08.OGAVGS, a fim de garantir o cumprimento da pena acessória por parte do arguido e, nessa medida, proteger a autonomia intencional do Estado de Direito.

  6. O crime de desobediência consumou-se com a omissão do acto determinado, consubstanciada, in casu, com a falta de entrega da carta de condução pelo arguido no prazo de dez dias após o trânsito.

  7. Se se entender que não é legítimo ao Tribunal cominar a falta de entrega da carta de condução com a prática do crime de desobediência, e se o arguido recusasse a entrega da carta perante a autoridade policial, nos termos do artigo 500°, n.° 3, do Código de Processo Penal, não haveria quaisquer consequências para o incumprimento.

  8. Com efeito, se o Tribunal não puder, desde logo, no acórdão condenatório, cominar com a prática de crime a falta de entrega da carta de condução, também a autoridade policial, num segundo momento que viesse a ocorrer e na sequência do artigo 500°, n.° 3, do Código de Processo Penal, não poderia cominar com tal crime a eventual e reiterada falta de entrega daquele documento por parte do arguido perante as autoridades policiais.

  9. A conduta do arguido de não entrega voluntária da carta e não se logrando proceder à apreensão daquele documento nos termos do artigo 500°, n.° 3, do Código de Processo Penal, cominaria na ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.

  10. A eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, parece-nos ser merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais, pois, a assim não ser, equivaleria a admitir-se a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de cumpri-la apenas quando entendesse.

  11. A cominação com o crime de desobediência obsta à pretensão do arguido que pretenda subtrair-se ao cumprimento da pena acessória em que foi condenado por acórdão e reforça a confiança da comunidade na validade da norma penal violada.

  12. Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido por violar o disposto nos artigos 348°, n.° 1, alínea b), do Código Penal e 311°, n.° 1, 2, alínea a) e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, e ordenando-se a sua substituição por outro a determinar o recebimento da acusação e designação de data para a audiência.

    Pelo que, dando provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro a determinar o recebimento da acusação pública proferida e designação de data para a audiência, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada Justiça!» 3.

    O arguido NÃO respondeu a tal recurso.

    4.

    Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso merece provimento, embora com fundamentos diversos, opinando que deve ser revogado o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que receba a acusação, não pela prática de um crime de desobediência, mas de um crime p. e p. pelo artigo 353º do CP, havendo que cumprir, oportunamente, o disposto no artigo 358º, n.º 1 e 3 do CPP.

    5.

    Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser este recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b) do mesmo diploma.

    II – Fundamentação 1.

    Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

    Assim, balizados pelos termos das conclusões[1], a questão a decidir consiste em saber se é de manter ou não a rejeição da acusação pública pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b) do C.Penal.

    Posteriormente, e caso se conclua que o comportamento do arguido não é passível de ser subsumido ao crime de desobediência, importará verificar e decidir se já poderá ser subsumido ao crime do artigo 353º do CP, retirando as consequências processuais, caso se responda afirmativamente a esta questão.

    Ou seja, o que se discutirá, em 1ª linha, é se estão ou não perfectibilizados os requisitos objectivos para a subsunção ao citado crime de desobediência do comportamento do arguido em não entregar a sua carta de condução após uma condenação em pena acessória, apesar da cominação feita por um juiz.

    2.

    Do DESPACHO recorrido 2.1. É o seguinte o teor do despacho recorrido: «O Tribunal é competente e o processo é o próprio.

    O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.

    Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer de imediato.

    1. Pelo presente processo, entende o Ministério Público estar suficientemente indiciada a prática, pelo arguido J..., de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348º, n.° 1, al. b) do Código Penal, atenta a seguinte factualidade: “1 - Por sentença proferida 06-02-2008, transitada a 7.3.2008, no Processo Sumário n.° 46/08.0 GAVGS que correu termos neste Tribunal Judicial, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos arts. 292.°, n.° 1, e 69.º, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), num total de €550,00 (quinhentos e cinquenta euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo prazo de 8 (oito) meses.

  13. Tendo em vista a execução de tais penas, o arguido foi notificado pessoalmente, no dia 06-02-2008, para ...fazer a entrega das suas licença e carta de condução, caso seja titular de ambas, na secretaria deste Tribunal, ou em qualquer posto policial da área da sua residência no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado desta sentença, sob pena de incorrer num crime de desobediência” o que bem percebeu e do que ficou bem ciente.

  14. Não obstante, naquele período e, nem posteriormente, o arguido não entregou os referidos documentos, como devia e podia, pois era e é titular carta de condução n.° AV-89838 0, emitida a 02-11-2007, válida até 15-005- 2012, para as categorias C, C1, C1E, CE e ate 15-05-2017, para as categorias B, B1, BE.

  15. O arguido sabia que a ordem que recebeu era legítima, que emanava de autoridade competente, que lhe foi regularmente comunicada e que lhe devia obediência, tendo faltado ostensivamente ao seu cumprimento.

  16. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era vedada por lei e que incorria, mais uma vez, em responsabilidade criminal”.

    1. Pois bem, atentemos na factualidade indiciada e nos elementos do tipo legal de crime imputado ao arguido.

    Preceitua o art. 348.°, n.° 1 do Código Penal que “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.

    Maia Gonçalves anota acerca deste normativo o seguinte: “Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da...

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