Acórdão nº 6/07.9GTCBR-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 16 de Junho de 2010

Magistrado ResponsávelPAULO GUERRA
Data da Resolução16 de Junho de 2010
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I - RELATÓRIO 1.

J... & Filhos, Ldª, proprietária do veículo semi-reboque C-XXXXXX, veio recorrer do despacho de fls. 32, exarado pela Exmª Juíza de Instrução Criminal de Coimbra, no âmbito do Inquérito n.º 6/07.9GTCBR, que declarou perdido a favor do Estado aquele veículo, nos termos do art° 109° do C.P., que se encontrava apreendido à ordem dos autos.

Em conclusão, alega que: «1. Não pode a ora recorrente concordar com o decretamento da perda a favor do Estado do seu semi-reboque, uma vez que entende não ter o mesmo qualquer suporte fáctico ou legal.

  1. Dos elementos constantes dos autos, não só não resulta a prática de quaisquer “factos ilícitos”, como resulta que a alteração do número do quadro foi efectuada em França e ai documentalmente verificada e atestada.

  2. O número constante do quadro do semi-reboque é e está exactamente igual ao que apresentava à data da compra pela ora recorrente, ou seja, com ‘sinais’ muito visíveis de ter sido alterado - como efectivamente, foi, como se disse já, em 11/08/1998, em França - e com o número dele constante e constante quer dos seus documentos, quer da sua factura de compra, que ora se junta, ou seja, VFKXXO33CJ1NLO129.

  3. Salvo o devido respeito, dos autos apenas resulta que o número do quadro do semi-reboque da ora recorrente foi alterado — nada existindo nos autos que permita concluir que tal alteração foi ilícita: pelo contrário! 5- Bem se vê que falha, ab initio, o requisito principal para a aplicação do artigo 109° do Código Penal.

  4. Mas mesmo que dos autos resultasse a prática de actos ilícitos — e, como vimos, não resulta — o certo é que ainda assim não se encontram preenchidos os requisitos que permitem a declaração de perda a favor do Estado do veículo em causa nos autos.

  5. É que o objecto em causa nos autos não põe em perigo, nem a segurança das pessoas, nem a moral, nem a ordem pública e não oferece qualquer risco de ser utilizado para o cometimento de nenhum ilícito típico, para além de ser propriedade da ora recorrente que não é, nem o agente de nenhum ilícito típico de nenhuma natureza, nem o beneficiário de qualquer infracção.

  6. Pelo que bem se vê que se não encontram cumpridos os requisitos previstos no artigo 109° do Código Penal, não devendo tal perda ter sido decretada.

  7. Acresce que, ao contrário do que entendeu o Ministério Público na sua douta promoção, a ora recorrente não foi negligente, tendo solicitado a entrega do veículo a fim de poder dar cumprimento ao que lhe era exigido, o que nunca lhe foi deferido (ou, sequer. respondido).

  8. Ainda que o tivesse sido, o artigo 109° do Código Penal não deve ser aplicado como “punição’ para a inércia dos proprietários dos objectos.

  9. Ao decidir da forma expendida no douto despacho proferida, violou o douto tribunal a quo, entre outros, os artigos 109° e 110° do Código Penal e os princípios, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da tipicidade e da nulla poena sine crimen.

    Termos em que e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, e, consequentemente, ser o douto despacho recorrido revogado».

    2.

    Respondeu o Ministério Público de 1ª instância, sustentando a improcedência do recurso, com base nas seguintes conclusões: Ø «No presente inquérito diligenciou-se por averiguar a identidade do agente que alterou o número de chassis do semi-reboque apreendido, alteração essa que foi confirmada no âmbito de um exame pericial a que o veículo foi submetido, pelo que é de concluir que veículo apreendido à ordem deste processo serviu para a prática dos factos ilícitos denunciados nos autos; Ø O despacho proferido pela Mma. J.I.C. que, nos termos do disposto no art. 109° do Cód. Penal, declarou perdido a favor do Estado o semi-reboque, respeitou os requisitos que permitem a declaração de perda do veículo a favor do Estado, já que esse objecto, nas condições em que se encontra, representa pelo menos um dos perigos a que alude tal disposição legal: oferece risco de ser utilizado para a prática de crimes e é propriedade da ora recorrente que, por via da sua eventual utilização nessas condições, é beneficiária do ilícito que neste inquérito se denuncia».

    3.

    Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido de que o recurso merece provimento, opinando, em síntese: «(…) Ora, no caso dos autos, concluiu-se durante o inquérito que se encontrava indiciada a falsificação do número de chassis do semi-reboque C- XXXXXX, por rebaixamento da área onde está impresso o número e um desalinhamento do grupo alfanumérico que o compõe, tendo-se concluído que houve viciação que é denominada como ‘ compressão a quente” , pelo que o veículo foi apreendido à ordem dos autos; mas não se apurou quem foi o autor dos factos nem em que data os mesmos foram praticados, razão pela qual foi determinado o arquivamento do inquérito. O número de chassis constitui um dos elementos identificadores do veículo.

    Mas, quer se trate de instrumenta sceleris quer se trate de producta sceleris (quer seja instrumento do crime ou produto do crime), para a declaração de perdimento a favor do Estado, é necessário que o bem seja susceptível, por sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, de pôr em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública ou oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos (ver neste sentido Ac. do STJ de 3-07-1996, in Col. Jurisp., tomo II, pág. 211).

    Não se vislumbra que tal venha a acontecer, isto é, que a utilização do veículo sirva para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, tendo em conta até a idade do veículo, com vinte anos e que no dizer do recorrente, pretende efectuar o seu abate.

    Sendo que o veículo semi-reboque não é instrumento nem produto do crime, mas apenas, foi o objecto sobre o qual incidiu a actuação. Não se falsifica com o veículo e este não é resultado da falsificação. Foi no veículo que se falsificou um dos seus elementos de identificação.

    (…) Assim, entendemos que não deve ser declarado perdido a favor do Estado, o semi-reboque C-XXXXXX.

    Termos em que emitimos parecer no sentido de que deve o presente recurso ser julgado procedente».

    4.

    Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [tendo a recorrente, parte legítima neste recurso, nos termos do artigo 401º/1 alínea d) parte final do CPP, respondido a fls 72], foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

    II – FUNDAMENTAÇÃO 1.

    Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

    Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, a questão a resolver consiste em saber se estão perfectibilizados os requisitos legais para o perdimento do veículo reboque, propriedade do recorrente, a favor do Estado.

    2.

    O despacho recorrido tem o seguinte – e singelo - teor: «Do resultado das diligências efectuadas, entende-se que assiste razão ao MP na sua promoção de fls 80.

    Assim sendo, ao abrigo do disposto no artigo 109º, n.º 1 do CP, declara-se perdido a favor do Estado o referido semi-reboque com a matrícula C-XXXXXX, apreendido à ordem dos autos e uma vez que o mesmo serviu para a prática dos factos ilícitos denunciados nos autos».

    3. APRECIAÇÃO DO RECURSO 3.1.

    Vem a sociedade comercial J... & Filhos, Ldª, enquanto proprietária do veículo visado, recorrer do despacho judicial que declarou perdido a favor do Estado o veículo semi-reboque C-XXXXXX.

    Alega que dos elementos constantes dos autos não resulta a prática de quaisquer factos ilícitos, antes resultando que a alteração do número de quadro foi efectuada em França e aí documentalmente verificada e atestada, entendendo que se não encontram preenchidos os requisitos que permitem a declaração de perda a favor do Estado do veículo em causa nos autos, porque não põe em perigo, nem a segurança das pessoas, nem a moral, nem a ordem pública e não oferece risco de ser utilizado para o cometimento de nenhum ilícito típico.

    Por essa razão, pede que seja revogada a decisão, por ter sido violado o disposto nos art°s 109° e 110º do C.P., e os princípios gerais da legalidade, proporcionalidade e da nulla pena sine crimen.

    3.2.

    Para melhor compreensão, façamos um breve historial do processado.

    Assim: Ø Pende este inquérito no DIAP de Coimbra desde Janeiro de 2007, tendo tido o seu início com um auto de notícia elaborado pela GNR, no qual se atesta que, numa fiscalização de trânsito, ocorrida em 5/1/2007, foi detectado...

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