Acórdão nº 154/10 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2010

Magistrado ResponsávelCons. Maria L
Data da Resolução20 de Abril de 2010
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 154/2010

Processo n.º 177/2009

Plenário

Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I

Relatório

  1. Um Grupo de Deputados à Assembleia da República veio requerer, nos termos do artigo 281.º, n.º 2, alínea f) da Constituição da República Portuguesa, a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, a título principal, das normas constantes dos artigos 10.º, 20.º, 21.º, n.º 1, 88.º, n.º 4, e consequentemente, da norma do artigo 109.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, todos da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que estabelece o regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas.

  2. O teor das normas questionadas é o seguinte.

    Lei n° 12-A/2008, de 27 de Fevereiro

    Artigo 10.º

    Âmbito da nomeação

    São nomeados os trabalhadores a quem compete, em função da sua integração nas carreiras adequadas para o efeito, o cumprimento ou a execução de atribuições, competências e actividades relativas a:

    a) Missões genéricas e específicas das Forças Armadas em quadros permanentes;

    b) Representação externa do Estado;

    c) Informações de segurança;

    d) Investigação criminal;

    e) Segurança pública, quer em meio livre quer em meio institucional;

    f) Inspecção.

    Artigo 20.º

    Âmbito do contrato

    São contratados os trabalhadores que não devam ser nomeados e cuja relação jurídica de emprego público não deva ser constituída por comissão de serviço.

    Artigo 21.°

    Modalidades do contrato

    1 — O contrato reveste as modalidades de contrato por tempo indeterminado e de contrato a termo resolutivo, certo ou incerto.

    Artigo 88.°

    Transição de modalidade de constituição da relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado

    4 — Os actuais trabalhadores nomeados definitivamente que exercem funções em condições diferentes das referidas no artigo 10.º mantêm os regimes de cessação da relação jurídica de emprego público e de reorganização de serviços e colocação de pessoal em situação de mobilidade especial próprios da nomeação definitiva e transitam, sem outras formalidades, para a modalidade de contrato por tempo indeterminado.

    Artigo 109.°

    Lista nominativa das transições e manutenções

    1 — As transições referidas nos artigos 88.º e seguintes, bem como a manutenção das situações jurídico-funcionais neles prevista, são executadas, em cada órgão ou serviço, através de lista nominativa notificada a cada um dos trabalhadores e tornada pública por afixação no órgão ou serviço e inserção em página electrónica.

    2 — Sem prejuízo do que nele se dispõe em contrário, as transições produzem efeitos desde a data da entrada em vigor do RCTFP.

    3 — Da lista nominativa consta, relativamente a cada trabalhador do órgão ou serviço, entre outros elementos, a referência à modalidade de constituição da sua relação jurídica de emprego público, às situações de mobilidade geral do, ou no, órgão ou serviço e ao seu cargo ou carreira, categoria, atribuição, competência ou actividade que cumpre ou executa, posição remuneratória e nível remuneratório.

    4 — Relativamente aos trabalhadores a que se refere o n.° 4 do artigo 88.º, a lista nominativa consta ainda nota de que a cada um deles mantém os regimes ali mencionados, bem como o referido no n.° 2 do artigo 114.º.

  3. No requerimento de fiscalização abstracta sucessiva apresentado, o requerente, após assim identificar as normas cuja constitucionalidade pretende ver apreciada e que constituem objecto do presente pedido, começa por tecer considerações genéricas sobre o diploma.

    Afirma-se antes do mais que, a pretexto de uma reforma da Administração Pública, o diploma tem como objectivo levar a cabo uma alteração da configuração do Estado e das suas funções ou tarefas constitucionalmente assinaladas, atingindo uma parte significativa de trabalhadores que actualmente exercem funções públicas, por via da mudança do vínculo e/ou estatuto de que usufruem presentemente e têm a legítima expectativa de continuar a usufruir.

    Com efeito, ao alterar radicalmente o regime jurídico-laboral aplicável aos trabalhadores da Administração Pública – alteração essa que se traduz tanto em um enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores como na redução do seu universo –, segundo o requerente, a legislação em causa vem comprometer a própria capacidade do Estado para desempenhar as funções que lhe estão constitucionalmente atribuídas, com evidentes prejuízos para os cidadãos.

    O enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores bem como a redução do seu universo decorre da circunstância de o regime de nomeação passar a ter um âmbito de aplicação muito restrito, previsto no artigo 10.º do diploma, generalizando-se, como modalidade de relação jurídica de emprego público, a figura do contrato de trabalho em funções públicas.

    Tal generalização redunda em um novo e substancial passo no sentido de transferir a regulação jurídica da administração pública e dos seus trabalhadores do direito administrativo para o direito privado.

    A fim de demonstrar a sua afirmação, o requerente observa que carreiras importantes para o interesse público e o serviço do cidadão – professores de todos os ramos de ensino (incluindo o ensino superior) médicos e outros profissionais do Serviço Nacional de Saúde, funcionários da Justiça e da Administração Fiscal, entre outras – não são abrangidas pela norma do artigo 10.º, devendo os seus trabalhadores, nos termos do artigo 20.º do diploma, ser contratados em vez de nomeados.

    O requerente entende que tal significa sobrepor à vitaliciedade que está ligada à nomeação definitiva dos trabalhadores da Administração Pública, em consonância com o papel específico que a Constituição lhes atribui, a precariedade acrescida que corresponde ao contrato de trabalho.

    Afirma-se ainda que, com tal legislação, e ao arrepio da Constituição, a função pública, como é tradicionalmente conhecida, passará a ser apenas uma das modalidades (provavelmente só residual) de emprego no sector público.

    Tal conformação legislativa traduz-se em uma descaracterização do figurino constitucional de Administração Pública, nos termos do qual a prossecução do interesse público implica uma permanência de funções que se passa a dispensar em relação à maioria dos trabalhadores, considerando o âmbito de aplicação restrito do artigo 10.º.

    O requerente põe em evidência que nessa reestruturação da Administração Pública vai implicada uma ideia de Estado subsidiário, em que se privilegia as funções de carácter repressivo e de conservação da ordem pública, de defesa da legalidade democrática, de soberania nacional e da integridade do território e de garantia da liberdade e segurança das populações – apenas para essas áreas se reservando o vínculo de nomeação – em detrimento de outras áreas não menos essenciais associadas ao Estado Providência ou Estado Social e que visam assegurar o bem-estar, criando condições propícias a alcançá-lo nos planos económico, político, social e cultural, garantindo o desenvolvimento pleno do cidadão e das suas actividades.

    Sustenta-se ainda que, estando as funções do Estado constitucionalmente fixadas, não pode o legislador delas dispor livremente, privilegiando umas em detrimento de outras.

    Segundo o requerente, a determinação constitucional resulta, desde logo, do preâmbulo da Constituição, que aponta o horizonte de “construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”, e do seu artigo 1.º que retoma a ideia de “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, retirando-se do artigo 2.º que “a realização da democracia económica social e cultural” é um suporte fundamental do Estado de direito democrático.

    A isso acresce que o artigo 9.º fixa as tarefas fundamentais do Estado, tarefas essas que são articuladas – no Título III da Parte I, respeitante aos direitos económicos, sociais e culturais – em múltiplas incumbências estaduais: a Constituição concebe o papel do Estado de tal modo que nele não pode deixar de estar incluída a capacidade de acção própria, i. é, dos seus serviços e estruturas, no sentido de garantir os várias direitos económicos, sociais e culturais.

    Assim, incumbe ao Estado intervir, no sentido de organizar, coordenar, subsidiar, apoiar e fiscalizar (entre outras expressões usadas pelo texto constitucional), visando a garantia do direito ao trabalho e da protecção dos direitos dos trabalhadores; da protecção e apoio aos consumidores; da existência de um sistema público de segurança social; de um serviço nacional de saúde; do direito à habitação; da protecção do ambiente e qualidade de vida; da protecção da família, da paternidade e maternidade, das crianças, da juventude, dos cidadãos com deficiência e da terceira idade, da garantia do acesso à educação e à cultura e da existência de um sistema público de ensino, incluindo no nível superior; da promoção da cultura física e do desporto.

    Em virtude de o Estado estar constitucionalmente vinculado à prossecução dessas tarefas e incumbido da sua realização, retira o requerente a conclusão de que não só a Constituição não sugere a ideia de Estado subsidiário como exige uma capacidade de intervenção dependente de estruturas e agentes com carácter permanente.

    A par da articulação entre o artigo 9.º e o Título III da Parte I, respeitante aos direitos económicos, sociais e culturais, retira-se ainda da Parte II da Constituição – relativa à Organização Económica (artigos 80.º e seguintes), tendo como princípio fundamental a declaração de subordinação do poder económico ao poder político democrático – uma definição do papel do Estado de estimular e apoiar, incentivar e disciplinar as múltiplas actividades económicas (e sem esquecer os objectivos das políticas agrícola, comercial e industrial, que ressaltam do Título III da mesma parte II).

    Ora, entende o requerente que com a reestruturação da Administração Pública operada pelo legislador, e na sequência de outras medidas legislativas que vão na mesma direcção, o Estado se demite de parte das tarefas que lhe são...

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