Acórdão nº 2692/08.3TABRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 11 de Janeiro de 2010

Magistrado ResponsávelCRUZ BUCHO
Data da Resolução11 de Janeiro de 2010
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães: *I - Relatório No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, no âmbito do processo comum singular nº 2692/08.3TABRG, por despacho de 24 de Agosto de 2009, foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos F....,. SA, Liliana , Cristiana e Manuel, todos com os demais sinais dos autos, na qual lhes imputava a prática “em co-autoria (…) de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 107º, n.ºs 1 e 2, artigo 105º, n.ºs 4, alíneas a) e b), e artigo 7º, n.º3 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/06, de 29 de Dezembro”, “por a considerar manifestamente infundada, uma vez que as condutas em causa estão descriminalizadas” *Inconformado com tal despacho dele recorreu o Ministério Público, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem: 1. «O douto despacho recorrido considerou que a alteração ao artigo 105°, n.º 1 do RGIT introduzida pelo artigo 113° da Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, descriminalizou também condutas anteriormente integradoras dos crimes de abuso de confiança contra a segurança social previstas no art.º 107°, n.º 1, sempre que a prestação tributária não seja superior a € 7 500,00, como é o caso dos autos, julgando cessados os efeitos penais da condenação, em conformidade com o disposto no n.º 2, do art.º 2.° do CP.

  1. Para tanto, o Tribunal "a quo" entendeu que a "remissão feita pelo n.º 1 do artigo 107º do RGIT para as penas previstas no n.º 1 do artigo 105º do mesmo diploma, tem de se considerar feita não só para a pena como também para o respectivo valor mencionado nesse preceito".

  2. Salvo o devido respeito, esta interpretação extensiva foi além da "mens legis", não encontrando suporte nem na letra, nem no espírito da lei.

  3. Desde logo, o art.º 107.°, n.º 1, apenas remete para o art.º 105.° no que respeita às penas aplicáveis (n.ºs 1 e 5 do art.º 105.°) e não à conduta. Esta última, encontra-se integralmente prevista naquele dispositivo legal. Não é, portanto, uma remissão em bloco para o art.º 105.°, mantendo-se, por isso, intacto o art.º 107.º 5. Por outro lado, constata-se que o legislador do RGIT, na parte III (Das infracções tributárias em especial), dentro do Título I (Crimes tributários), reservou dois capítulos diferentes, um para os crimes fiscais (capítulo III) e outro para os crimes contra a segurança social (capítulo IV), atribuindo-lhes, por isso, um tratamento diferente, tendo em conta a diferente natureza das prestações.

  4. Também não se pode afirmar uma total correspondência dos regimes punitivos dos crimes fiscais e dos crimes contra a segurança social.

  5. Não obstante a similitude da construção dos ilícitos de abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social, são diferentes os bens jurídicos que visam tutelar.

  6. No crime de abuso de confiança contra a segurança social o bem jurídico tutelado é um bem jurídico multifacetado, abrangendo o direito fundamental à segurança social e o dever de solidariedade e, ainda, o património da segurança social, ao passo que no abuso de confiança fiscal visa-se proteger o erário público e o interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias, tendo em vista a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza.

  7. Sendo, como são, actuais e prementes os problemas de sustentabilidade da Segurança Social Portuguesa, por certo não esteve no espírito do legislador, com a alteração da redacção do artigo 115°, n° 1 do RGIT (que prevê e pune o crime de abuso de confiança fiscal) feita pelo artigo 113° da Lei 64-A/2008, de 31/12, restringir também a punibilidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. no art.º 107.°, n.º 1 (dando um sinal de sentido negativo à sociedade, que redundaria num agravamento daqueles problemas).

  8. O douto despacho recorrido, na parte que declarou cessados os efeitos da condenação pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social violou os artigos 113.° da Lei 64-A/2008, de 31/12, 105°, n.º 1 e 107°, n.º 1 do RGIT, 2° n° 2 do Código Penal e 9°, n.º 2 do Código Civil.» Termina pedindo que seja revogado o despacho recorrido “e substituído por outro que ordene o normal prosseguimento dos autos, designadamente, para efeitos do artigo 311º do CPP” *Os arguidos não responderam ao recurso.

    * *O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 271.

    *Nesta Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se pela procedência do recurso.

    *Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, não houve resposta.

    Foram colhidos os vistos legais e realizada a conferência.

    * II- Fundamentação 1.

    Conforme se encontra documentado nos autos: §1. O Ministério Público acusou os arguidos F....,. SA, Liliana , Cristiana e Manuel, todos com os demais sinais dos autos, imputando-lhes a prática “em co-autoria (…) de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 107º, n.ºs 1 e 2, artigo 105º, n.ºs 4, alíneas a) e b), e artigo 7º, n.º3 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/06, de 29 de Dezembro” Conforme resulta daquela acusação, as cotização não pagas ascendem ao montante global de €13630,99, reportam-se aos meses de Março e Abril de 2007 e de Junho de 2007 a Março de 2008, e nenhuma delas é superior a €7500.

    *§2. Em 24 de Agosto de 2009 foi proferido o seguinte despacho (despacho recorrido): «O tribunal é competente.

    O Ministério Público tem legitimidade.

    *Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada, p. e p. pelo Artigo 107, n.ºs 1 e 2 do RGIT, por referência ao Artigo 105, n.ºs 4, als a) e b), 6 e 7 e ainda Art. 7, n.º 3 do mesmo diploma.

    Acontece que em 1 de Janeiro de 2009, entrou em vigor da Lei n.° 64-A/2008, de 31.12 que no seu Artigo 113, alterou a redacção do Artigo 105 do RJIT, por forma a descriminalizar condutas anteriormente integradoras dos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social (estas últimas por força da remissão do n.º1 do Artigo 107 do RGIT) sempre que a prestação tributária não seja superior a € 7.500,00, como é o caso destes autos.(sublinhado no original) (. A este propósito, refere-se que a remissão feita pelo n° 1 do Artigo 107 do RG IT para as penas previstas no n.º 1 do Artigo 105 do mesmo diploma, tem de se considerar feita não só para a pena como também para o respectivo valor mencionado nesse preceito, da mesma forma que a remissão feita pelo mesmo n.º 1 do Artigo 107 para as penas previstas no n.º 5 do Artigo 105, tem de se considerar feita como sempre se considerou - não só para a pena (agravada) aí prevista, mas também para o valor (superior a € 50.000,00) aí igualmente mencionado e subjacente à agravação. Não fazendo por isso sentido, em nosso modesto entendimento, interpretar a mesma norma - Artigo 105, n.º 1 do RGIT-, de forma diferente, consoante se trate da remissão nela feita para o n.º 1 ou n.º5 do artigo 105 .

    .Aliás, outra posição não se nos afigura coerente com a circunstância de, com esta nova lei, e por revogação do n.º 6 do Artigo 105 do RGIT, se ter agora eliminado para os crimes de abuso de confiança contra a segurança social, a possibilidade de extinção da responsabilidade criminal pelo pagamento, quando o valor da prestação não excedesse os € 2.000,00. Pois, se não se tivesse querido restringir a punibilidade para os casos de prestações superiores a € 7.500,00, a lógica seria transpor o antigo n.º 6 do Artigo 105 do RGIT para o Artigo 107 do mesmo diploma, de forma a deixar intocado o respectivo punitivo, o que não foi feito, obviamente por tal ter deixado de fazer sentido, uma vez que já não é criminalizada a falta de entrega de contribuições à segurança social de valor não superior a € 7500,00) Consequentemente e em conformidade com o disposto no artigo 311º, n.º2, al. a) e n.º 3, al. d) do CPP, decido rejeitar a acusação, por a considerar manifestamente infundada, uma vez que as condutas em causa nos autos estão descriminalizadas.

    Notifique» *2.

    A questão.

    Neste recurso, a única questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se no que respeita ao crime de abuso de confiança contra a segurança social ocorreu ou não a referida despenalização, com a consequente extinção da responsabilidade criminal.

    * 3. A alteração legislativa.

    A Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009, consagrou importantes alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias, nomeadamente no que concerne ao crime de abuso de confiança fiscal.

    Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 113º da citada Lei n.º 64-A/2008, foi alterada a redacção do n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, mediante a introdução de um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando-se a exigir que ela seja de "valor superior a € 7500".

    Fruto desta alteração, a redacção do n.º1 do citado artigo 105º é agora a seguinte: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias” Com esta nova redacção, por força daquele limite [independentemente da sua qualificação dogmática - como elemento conformador da ilicitude penal ou como condição objectiva de punibilidade - veja-se a discussão in Susana Aires de Sousa, Os Crimes...

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