Acórdão n.º 472/95, de 06 de Setembro de 1995

Acórdão n.° 472/95 Processo n.° 363/95 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional: I - Relatório 1 - O Presidente da República veio requerer ao Tribunal Constitucional, invocando o preceituado no artigo 278.°, números 1 e 3, da Constituição da República e nos artigos 51.°, n.° 1, e 57.°, n.° 1, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 1.°, conjugado com o disposto nas alíneas a), f) e g) do artigo 2.°, do decreto da Assembleia da República n.° 266/VI, que 'autoriza o Governo a legislar sobre o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais', recebido em 21 de Julho de 1995 na Presidência da República.

Para fundamentar o pedido formulado aduzem-se as seguintes razões: O artigo 1.° do decreto em apreço concede autorização ao Governo para legislar sobre os 'estatutos dos tribunais administrativos e fiscais' e o 'estatuto dos respectivos magistrados judiciais'; O artigo 2.°, clarificando o respectivo sentido e extensão, prevê a criação de um tribunal central administrativo, situado num escalão intermédio entre o Supremo Tribunal Administrativo e os tribunais administrativos de círculo [alínea a)]; Prevê igualmente o aperfeiçoamento das regras relativas à composição e competências do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais [alínea f)]; Bem como a introdução de aperfeiçoamentos no estatuto dos juízes do contencioso administrativo e fiscal, com o alargamento das áreas de recrutamento [alínea g)]; A criação do 'tribunal central administrativo', que recebe na sua secção de contencioso administrativo parte significativa das actuais competências do Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais administrativos de círculo, representa a criação de um tribunal totalmente novo, sem paralelo na nossa tradição e história judiciárias, que virá a alterar profundamente as regras de controlo dos actos praticados por titulares dos órgãos de poder público; O ordenamento constitucional reconhece os conselhos superiores de justiça, onde se inclui o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como órgãos de defesa da 'independência externa' dos magistrados relativamente a outros poderes estranhos à organização judiciária, não podendo, por outro lado, as regras relativas à sua composição e competência perturbar a sua 'independência interna'; A definição das formas de recrutamento dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais constitui uma das questões centrais do respectivo estatuto, com reflexo nas garantias da sua independência e autonomia face ao poder político; A melhor doutrina considera que estas matérias, pelo seu relevo político-constitucional - que decorre, desde logo, da consideração de que os tribunais têm uma posição idêntica à dos outros órgãos constitucionais de soberania -, devem ser incluídas no âmbito da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, pelo que se requer a apreciação da constitucionalidade das normas identificadas face ao disposto no artigo 167.°, alínea l), da Constituição da República.

Com o pedido, junta-se fotocópia do decreto n.° 266/VI da Assembleia da República.

2 - Admitido o pedido, foi notificada a Assembleia da República para sobre ele se pronunciar (artigo 54.° da Lei n.° 28/82), tendo-se o respectivo Presidente limitado a oferecer o merecimento dos autos.

O que tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos 3 - A questão que vem suscitada com o presente pedido de apreciação preventiva de constitucionalidade é a de saber se a autorização legislativa solicitada pelo Governo à Assembleia da República para legislar sobre o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, designadamente para criar o tribunal central adminsitrativo como segunda instância daquela ordem de tribunais, para estabelecer regras relativas à composição e competência do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e para modificar o estatuto dos juízes daquele contencioso, com o alargamento da área de recrutamento, afronta a norma constitucional que determina a reserva absoluta da competência legislativa da Assembleia da República para legislar sobre 'estatuto dos titulares de órgãos de soberania [...], bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal'.

Antes de iniciar a apreciação do pedido, proceder-se-á a uma curta análise sobre o conceito constitucional de 'órgãos de soberania' e, de entre estes, dos 'tribunais', passando à matéria relativa ao estatuto dos juízes com referência ao conselho superior respectivo e ao pertinente âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, para, de seguida, se equacionarem os diversos aspectos do pedido formulado, que serão apreciados separadamente.

3.1 - Órgãos de soberania. - Nos termos do preceituado no artigo 113.° da Constituição, 'são órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais' (n.° 1), estabelecendo o n.° 2 do preceito que 'a formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os definidos na Constituição'.

A individualização pela Constituição dos 'órgãos de soberania' significa que só o são os que nela forem referenciados como tais (princípio da tipicidade), sendo o conceito designativo de sujeitos constitucionais com competências institucionais adequadas à finalidade de realização das tarefas e funções definidas na lei fundamental (o exercício de um certo número de 'poderes soberanos', v. g., legislativo, executivo, judicial, etc.).

Numa perspectiva da caracterização material dos 'órgãos de soberania', eles correspondem, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.' ed. revista, 1993, p. 493), 'àquilo que a moderna doutrina designa por órgãos constitucionais em sentido restrito. Em sentido amplo, são órgãos constitucionais todos os mencionados ou referidos pela Constituição, mas em sentido restrito consideram-se órgãos constitucionais apenas aqueles que revestem cumulativamente as seguintes características: (a) existência, posição institucional e competências essenciais imediatamente constituídas pela Constituição (são órgãos imediatos, na terminologia tradicional); (b) faculdade de auto-organização interna; (c) posição de equiordenação relativamente aos outros órgãos de soberania, independentemente das relações extra e intra-orgânicas estabelecidas pela própria Constituição'.

Analiticamente, a doutrina vem considerando que no conceito de órgão se podem detectar quatro elementos incindíveis, mas que importa distinguir: a instituição, correspondendo de certo modo à realidade que perdura na sociedade; a competência, correspondendo ao conjunto de poderes atribuído ao órgão; o titular, a pessoa ou pessoas físicas que encarnam a instituição e formam a vontade do órgão, e o cargo ou mandato, correspondendo à função do titular do órgão (v. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, 1990, pp. 59 e 60).

De qualquer modo, sempre a formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania hão-de ser os definidos pela Constituição (v. artigo 113.°), o que implica necessariamente a reserva de Constituição quanto ao preenchimento dos elementos essenciais daqueles vectores organizacionais, salvo quando a Constituição remete expressamente para a lei.

3.2 - Se a formação, a composição e o funcionamento dos órgãos de soberania parecem não suscitar dificuldades, a questão da competência necessita de um maior aprofundamento.

Por competência de um órgão de soberania terá de entender-se o conjunto de poderes e funções que lhe é atribuído para que possa realizar as actividades ou tarefas que lhe são constitucional ou legalmente incumbidas.

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (ibidem, p. 495), 'a densificação do conceito constitucional de competência tem de fazer-se a partir das próprias normas constitucionais - conceito positivo de competência - e deve ter em conta a sua multidimensionalidade. Em primeiro lugar resulta claramente de vários preceitos relativos à competência dos órgãos de soberania que competência é, antes de mais, um padrão jurídico organizatório que conforma e caracteriza a organização do aparelho do Estado. Em segundo lugar, a competência adquire a natureza modal-instrumental, quando se configura, no caso concreto, como o modo e a forma de prossecução das tarefas e funções atribuídas a um órgão do Estado. Em terceiro lugar, a enumeração de competências tem um efeito legitimante, pois identifica o sujeito a quem é confiado um determinado núcleo competencial, bem como os poderes jurídicos à sua disposição para prosseguir as tarefas enquadradas nesse núcleo (competência legitimante). Em quarto lugar, a definição de competências significa também, em termos jurídico-constitucionais, a individualização de direitos e deveres subjectivos públicos dos órgãos constitucionais (competência=fonte de direitos e deveres). Finalmente, da competência e do exercício dos poderes e funções a ela inerentes resulta que a competência exprime o poder de decisão confiado normativo-constitucionalmente aos órgãos de soberania.' Importa notar que no caso dos tribunais se trata de um complexo de órgãos de soberania, na medida em que tal qualificação abrange todos os tribunais, pelo que cada um desses tribunais tem de ser considerado como um órgão de soberania. Mas, pese embora esta natureza, a Constituição apesar de se reservar a definição da sua formação, da sua composição, da sua competência e funcionamento - acaba por remeter para a lei grande parte destasatribuições.

Vejamos.

4 - Os tribunais. - Feita uma perfunctória análise do conceito de 'órgão de soberania', importa fazer uma referência mais próxima aos tribunais enquanto complexo de órgãos de soberania, cuja modificação estatutária (no caso, dos tribunais administrativos e fiscais) constitui o objecto do pedido de autorização legislativa e suscita as dúvidas...

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