Acórdão n.º 143/85, de 03 de Setembro de 1985

Acórdão n.º 143/85 Processo n.º 139/84 Acordam no Tribunal Constitucional: 1 Relatório O Presidente da Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma da alínea i) do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março), o qual determina que o exercício de advocacia é incompatível com a actividade de funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos, com excepção dos docentes das disciplinas de Direito. Alega que, abrangendo a incompatibilidade todos os funcionários e agentes públicos, com excepção dos docentes de Direito, tal preceito estabelece uma situação discriminatória em relação a todos os demais docentes (os que leccionam outras disciplinas), infringindo, por isso, o princípio da igualdade, consignado no artigo 13.º da Constituição da República.

Solicitado a pronunciar-se sobre o assunto, o Primeiro-Ministro veio juntar um parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, no qual se defende a opinião de que a norma questionada não é inconstitucional, designadamente por a incompatibilidade estabelecida dever entender-se fundada no interesse em garantir o bom exercício dos cargos públicos, à luz do artigo 269.º da Constituição, justificando-se a excepção justamente porque o exercício da advocacia por parte dos docentes de direito poderia enriquecer o exercício da sua função docente, o que se não verificaria nos demais casos.

Submetida a questão à apreciação do Tribunal, houve que proceder a mudança de relator, por o relator originário ter ficado vencido quanto à decisão.

Com efeito - importa desde já dizê-lo -, o Tribunal pronuncia-se pela inconstitucionalidade do mencionado preceito, na parte em que, no entendimento do Tribunal, ele vem questionado.

Cumpre dar conta dos termos da decisão alcançada e da respectiva fundamentação.

2 - O pedido e os seus fundamentos 2.1 - Delimitação do âmbito do pedido O requerimento do Presidente da Assembleia da República refere-se à alínea i) do n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados. Diz esse preceito: Artigo 69.º (Enumeração das incompatibilidades) 1 - O exercício da advocacia é incompatível com as funções e actividades seguintes: ...

i) Funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, com excepção dos docentes de disciplinas de Direito; ...

No enunciado e na conclusão dos seus requerimentos - pois de dois requerimentos se trata, embora com a mesma data e com objecto e fundamentos substancialmente idênticos, pelo que foram incorporados num só processo -, o Presidente da AR limita-se a mencionar a referida norma, sem qualquer restrição quanto ao âmbito do pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade. Todavia, o Tribunal entende que, considerados os requerimentos no seu todo, o pedido não abrange a norma em toda a sua extensão, mas apenas uma parte dela, a saber: a parte em que ela considera incompatível com o exercício da advocacia a função ou a actividade de funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos que sejam docentes de outras disciplinas que não as de Direito.

Com efeito, é essa a melhor interpretação que decorre do teor dos requerimentos, e com a razão de ser e motivação do pedido, afigurando-se ser seguro que eles questionam a incompatibilidade, não em relação a todos os funcionários e agentes públicos - que tal é o âmbito da norma, com a excepção nela contida -, mas apenas em relação à categoria dos docentes.

Existem dois elementos que, em conjunto, são decisivos para se alcançar esta conclusão. Em primeiro lugar, o pedido do Presidente da AR tem origem em duas petições que lhe foram dirigidas por dois cidadãos que, tendo requerido a inscrição na Ordem dos Advogados, a viram recusada com fundamento na questionada norma do Estatuto, por serem professores de disciplinas não jurídicas (um deles, numa escola preparatória; outro, numa escola secundária). O Presidente da AR não só assume como seus os fundamentos das aludidas petições, como faz instruir os seus requerimentos com uma cópia delas, significando assim a identidade de temas entre umas e outros.

Ora em qualquer das petições pedia-se, que o Presidente da AR requeresse a apreciação e declaração da inconstitucionalidade do referido preceito do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas 'no que concerne à discriminação entre docentes que leccionam disciplinas de Direito e outras disciplinas'.

Em segundo lugar - e sobretudo -, é o próprio Presidente da AR que explicitamente restringe o âmbito da questão por ele trazida ao Tribunal. Num dos requerimentos, depois de enunciar o teor do preceito em causa, acrescenta logo que 'esta norma estabelece uma situação discriminatória [...] em relação aos docentes de quaisquer outras disciplinas', para, depois, argumentar que, 'se a lei abre uma excepção para o exercício da advocacia para uma certa categoria de docentes, deveria alargar tal excepção a todos eles, sob pena de se violar o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei' (itálicosacrescentados).

É lícito, pois, concluir que, quando requer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade da norma da alínea i) do n.º 1 do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, o Presidente da AR pretende apenas que esta seja apreciada à luz da questão por ele mesmo delimitada, ou seja, a que tem a ver apenas com a categoria dos docentes.

Sendo este o âmbito real do pedido, cumpre ao Tribunal respeitá-lo.

2.2 - Estrutura e alcance da norma questionada A norma da alínea i) do artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados estabelece uma regra com uma excepção. A regra é a de que é incompatível com o exercício da profissão de advogado o desempenho de qualquer função ou actividade de funcionário ou agente de qualquer serviço público: a excepção é a de que a incompatibilidade não afecta aqueles funcionários ou agentes que sejam docentes de disciplinas de Direito.

É óbvio que o pedido de declaração de inconstitucionalidade não se dirige contra a excepção, pois não é posta em causa a inexistência de incompatibilidade da advocacia com a docência de disciplinas de Direito. Do que se trata não é de saber por que é que os advogados podem ser professores de Direito, mas sim por que é que, desde logo, não podem ser professores de outras matérias. De outro modo: não se questiona por que é que os docentes de Direito podem obter a inscrição na Ordem dos Advogados, mas sim por que é que os demais docentes não podem. Enfim, o que está em causa é a regra, ela mesma, na parte em que abrange os demais docentes (ou seja: os que leccionem outras disciplinas que não de Direito).

Sucede que essa parte da norma não possui autonomia no enunciado semântico do preceito, pois, ao exprimir a regra da incompatibilidade, ele refere os funcionários ou agentes em geral, sem discriminar as várias categorias deles, designadamente sem autonomizar a categoria dos docentes.

Todavia, a falta de uma correspondência literal, através de um segmento semântico 'palpável', não impede que o preceito seja dividido em tantos segmentos normativos ideais quantos aqueles que sejam relevantes de acordo com o ponto de vista adoptado. De resto, a autonomização da categoria dos docentes é feita de forma implícita, pois a excepção à regra (a dos docentes das disciplinas de Direito) destina-se justamente a uma espécie (os docentes de Direito) dessa categoria (os docentes em geral).

Tudo se passa como se a norma devesse ser lida assim: 'funcionários e agentes de quaisquer serviços públicos, de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, incluindo o pessoal docente, com excepção dos docentes das disciplinas de Direito'.

Esta autonomização da categoria dos docentes de entre o universo dos funcionários e agentes públicos implica que o Tribunal se vai debruçar sobre a norma apenas na parte em que contempla aquela categoria. Mas desta redução do espaço de incidência da apreciação do Tribunal não pode, obviamente, deduzir-se nenhuma posição quando à norma na sua parte restante.

3 - A solução 3.1 - O sentido da norma questionada O referido artigo 69.º do Estatuto da Ordem dos Advogados integra-se no capítulo das 'incompatibilidades' e 'impedimentos', sendo o preceito que contém a 'enumeração das incompatibilidades' (tal é a sua rubrica), estando inserido logo após a disposição introdutória desse capítulo (o artigo 68.º), que define o 'âmbito das incompatibilidades', determinando que 'o exercício da advocacia é incompatível com qualquer outra actividade ou função que diminua a independência e a dignidade da profissão' (itálico acrescentado). É neste contexto, e incluída num vasto elenco de incompatibilidades, que aparece a norma segundo a qual não pode exercer a advocacia quem seja funcionário ou agente de qualquer serviço público, incluindo o pessoal docente, salvo o que o for de disciplinas de Direito.

Destas considerações é lícito extrair três conclusões: 1.', a incompatibilidade em causa tem a ver com a protecção do estatuto do advogado, e não com a função ou actividade que é declarada incompatível com a advocacia; 2.', a incompatibilidade há-de justificar-se, ao menos quanto à sua extensão, à luz da defesa da independência e da dignidade da profissão, e não de outros valores, pois são esses os fundamentos legalmente invocados para elas (e não se vê que outros valores da profissão é que haveriam de merecer protecção através deste meio); 3.', a incompatibilidade atinge apenas o pessoal docente que seja funcionário ou agente público (ou sejam os professores das escolas públicas), e não o das escolas privadas (ou cooperativas).

A partir destas conclusões é possível afastar imediatamente certas formas de abordar o problema que, aparentemente, poderiam apresentar alguma relevância, mas que na verdade a não possuem.

Assim, na avaliação da norma em causa não pode entrar-se em linha de conta...

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