Parecer n.º 23/2007, de 01 de Abril de 2008

Parecer n. 23/2007

Magistrado judicial - Despesas de transporte - Transporte público - Transporte aéreo - Domicílio necessário - Interpretaçáo da lei - Princípio da igualdade - Princípio da solidariedade e da continuidade territorial para publicaçáo.

  1. Os juízes dos tribunais superiores estáo dispensados da obrigaçáo de domicílio, conforme artigo 8., n. 3, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n. 21/85, de 30 de Julho, e têm direito, nos termos do artigo 17., n. 1, alínea c), do mesmo diploma, e dos artigos 1. e 2., n.os 1, alíneas a) e b), e 2, do Decreto -Lei n. 274/78, de 6 de Setembro, à utilizaçáo gratuita de transportes colectivos públicos, terrestres e fluviais, para todo o território, no caso dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, ou dentro da área do respectivo distrito judicial em que exercem funçóes, no caso dos juízes das relaçóes, e ainda entre a sua residência e a sede da respectiva circunscriçáo judicial;

  2. O direito especial de utilizaçáo gratuita de transportes colectivos públicos, conferido a esses magistrados pelas citadas disposiçóes legais, náo contempla o transporte aéreo nas deslocaçóes entre as respectivas residências, ainda que se localizem nas Regióes Autónomas dos Açores ou da Madeira, e a sede do tribunal onde exercem funçóes, soluçáo legislativa que náo ofende qualquer norma ou princípio constitucional.

    Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Justiça:

    Excelência:

    I - Um juiz desembargador, residente na cidade do Funchal - Regiáo Autónoma da Madeira, tem vindo a requerer o reembolso, pelos serviços do Ministério da Justiça, das quantias despendidas em transporte aéreo, entre o Funchal - Lisboa, e regresso, por ocasiáo das suas deslocaçóes ao Tribunal da Relaçáo de Évora, onde exerce funçóes.

    No primeiro requerimento que dirigiu a SS. Ex.ª o Ministro da Justiça1, aquele magistrado, natural de freguesia do concelho do Funchal, alega que tomou posse, em 5 de Setembro de 2006, do cargo de juiz no Tribunal da Relaçáo de Évora e que «[d]ada a sua qualidade de juiz de segunda instância, goza da faculdade legal de residir em qualquer ponto do território nacionalx» [cf. artigo 8., n. 3, da Lei n. 21/85, de 30 de Julho].

    Lê -se ainda nesse requerimento:

    - O Estado, através do Ministério da Justiça, suporta o transporte dos juízes de segunda instância, desde a sua residência ao Tribunal e regressox1;

    - Contudo, para o requerente é apenas assegurado o transporte entre Lisboa e Évora, mas náo entre Funchal e Lisboa;

    - Para o efeito, alega -se que o Estado apenas paga transporte público, mas por via terrestre ou fluvial;

    - Todavia, o requerente náo pode chegar a Lisboa de autocarro, comboio ou cacilheiro, como fazem outros juízes da Relaçáo de Évora, mas apenas por via aérea;

    - Considerando a "necessidade de corrigir as desigualdades estruturais, originadas pelo afastamento e pela insularidade", estabelece o Estatuto Político -Administrativo da Regiáo Autónoma da Madeirax2 - lei de valor reforçado ( -) - que compete, designadamente, ao Estado, em consonância com as suas obrigaçóes constitucionais, adoptar as medidas necessárias à "plena consagraçáo dos direitos de cidadania da populaçáo madeirense";

    - Constitui obrigaçáo do Estado diligenciar para que seja conferido um tratamento igual a situaçóes de facto que, essencialmente, sáo iguais, eliminando, deste modo, diferenciaçóes discriminatórias, irrazoáveis, destituídas de fundamento racional e materialmente infundadasx3;

    - O segmento do Estatuto dos Magistrados Judiciais que alude a transporte público terrestre ou fluvial, por violar o princípio constitucional da igualdade e o da continuidade territorial, plasmado no "Estatuto" da Regiáo Autónoma da Madeira é, assim, inconstitucional e ilegal, devendo, por isso, ser recusada a sua aplicaçáo.

    A pretensáo foi remetida para o Tribunal da Relaçáo de Évora por se ter considerado que, pela sua autonomia administrativa, lhe competia decidir sobre ela.

    O Presidente daquele Tribunal expressou o entendimento2 de que as despesas efectuadas entre a Regiáo Autónoma da Madeira e o continente pelo Requerente «náo poderáo ser reembolsadas, à luz do quadro legal vigente», referindo, a propósito:

    Com efeito, o artigo 17., n. 1, al. c), do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) apenas confere aos juízes o direito (especial) à "utilizaçáo gratuita de transportes colectivos públicos, terrestres e fluviais[3], de forma a estabelecer pelo Ministério da Justiça, dentro da área da circunscriçáo em que exerçam funçóes e, na hipótese do n. 2 do artigo 8., desde esta até à residência.

    A utilizaçáo gratuita de transportes aéreos está, pois, excluída da

    previsáo da norma da al. c), n. 1 do cit. artigo 17., norma essa que, aliás, ao que parece, coloca os juízes que tenham residência nas Regióes Autónomas e exerçam funçóes em tribunais superiores em gritante situaçáo de injustiça relativamente aos demais juízes que exerçam funçóes em tribunais superiores, residentes no Continente, e viola o princípio da igualdade a que a lei Fundamental (artigo 13.) confere dignidade constitucional.

    Efectivamente, "os juízes do Supremo Tribunal de Justiça e das Relaçóes estáo dispensados da obrigaçáo de domicílio, salvo deter-minaçáo em contrário do Conselho Superior de Magistratura, por motivo de serviço" (artigo 9., n. 3, do EMJ).

    Ora, enquanto os juízes residentes em qualquer ponto do Continente, que exerçam funçóes nos tribunais superiores, têm direito - que pode ser exercido efectivamente - à utilizaçáo gratuita de transportes colectivos públicos, terrestres e fluviais, desde a residência até ao Tribunal da Relaçáo em que exerçam funçóes, os juízes que residam nas Regióes Autónomas e exerçam funçóes nos tribunais superiores têm de suportar as despesas de transporte entre as Regióes Autónomas e o Continente, no exercício e por causa do exercício das suas funçóes, uma vez que náo existem transportes terrestres nem fluviais (entre as Regióes Autónomas e o Continente) e náo têm direito à utilizaçáo gratuita de transportes aéreos, direito este que eliminaria a apontada e inaceitável - pois que discriminatória e sem justificaçáo razoável e, por isso, violadora do referido princípio da igualdade - diferenciaçáo de tratamento.

    Depois de referir que só por via legislativa poderá ser tutelada a situaçáo dos juízes que residam nas regióes autónomas, relativamente ao pagamento das despesas de transporte entre aquelas e o tribunal da relaçáo em que exerçam funçóes4, o Presidente da Relaçáo de Évora sugere que «a questáo deverá ser objecto de parecer da Auditoria do Ministério da Justiça ou do Conselho Consultivo da Procuradoria -Geral da República».

    Vossa Excelência dignou -se solicitar a este Conselho Consultivo parecer sobre a matéria em apreço que, assim, cumpre emitir5.

    II - 1 - De acordo com o artigo 215. da Constituiçáo da República, «os juízes dos tribunais judiciais formam um corpo único e regem -se por um só estatuto».

    A magistratura judicial é constituída por juízes do Supremo Tribunal de Justiça, juízes das relaçóes e juízes de direito conforme dispóe o artigo 2. do actual Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), aprovado pela Lei n. 21/85, de 30 de Julho6.

    O capítulo II do EMJ, dedicado aos «Deveres, incompatibilidades, direitos e regalias dos magistrados judiciais», contém as disposiçóes que, por particularmente implicadas na situaçáo que suscitou esta consulta, importa, desde já, convocar.

    2 - Respeitam elas ao dever de domicílio necessário imposto aos magistrados judiciais no artigo 8. e ao direito especial da utilizaçáo gratuita de transportes colectivos públicos previsto no artigo 17., n. 1, alínea c).

    Dispóe o primeiro preceito:

    Artigo 8.

    Domicílio necessário

    1 - Os magistrados judiciais têm domicílio necessário na sede do tribunal onde exercem funçóes, podendo, todavia, residir em qualquer ponto da circunscriçáo judicial, desde que náo haja inconveniente para o exercício de funçóes.

    2 - Quando as circunstâncias o justifiquem e náo haja prejuízo para o cabal exercício das suas funçóes, os juízes de direito podem ser autorizados pelo Conselho Superior da Magistratura a residir em local diferente do previsto no número anterior.

    3 - Os juízes do Supremo Tribunal de Justiça e das relaçóes estáo dispensados da obrigaçáo de domicílio, salvo determinaçáo em contrário do Conselho Superior da Magistratura, por motivo de serviço.7

    Relacionado com este dever, estabelece -se no artigo 9. a proibiçáo de os magistrados judiciais se ausentarem da circunscriçáo judicial, a náo ser quando em exercício de funçóes, no gozo de licença ou, desde que náo haja, em caso algum, prejuízo para a execuçáo do serviço urgente, nas férias judiciais e em sábados, domingos e feriados.

    14202 Esta limitaçáo à livre circulaçáo dos magistrados e à livre escolha do seu domicílio já se encontrava contemplada, como uma das «inibiçóes» entáo impostas, nos Estatutos Judiciários promulgados anteriormente à Constituiçáo da República de 19768, tendo sido retomada no Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n. 85/77, de 13 de Dezembro9.

    A sua teleologia é evidente, constituindo, como se assinala no parecer n. 42/9810 deste Conselho, uma forma de garantir a total e absoluta disponibilidade dos magistrados para o serviço11.

    Noutra formulaçáo, retirada do n. 2 do artigo 8. do EMJ, a obrigaçáo de domicílio na sede do tribunal onde exercem funçóes imposta, como regra, aos magistrados judiciais, visará propiciar «o cabal exercício das suas funçóes».

    Como excepçáo a tal regra, contempla a lei duas situaçóes, previstas, respectivamente, nos n.os 2 e 3, daquele preceito.

    A primeira respeita aos juízes de direito. Estes podem ser autorizados pelo Conselho Superior da Magistratura a residir fora da circunscriçáo judicial onde se situa o tribunal onde exercem funçóes desde que existam circunstâncias que o justifiquem e náo haja prejuízo para o exercício das suas funçóes.

    A segunda situaçáo diz respeito aos juízes dos tribunais...

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