A institucionalização do casamento
Autor | Helder Martins Leitão |
Cargo do Autor | Advogado |
Páginas | 13-19 |
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Afastada nos parece qualquer dúvida quando se leia o título deste capítulo, caso se atente que o trabalho encetado vem subordinado ao divórcio e este só funciona se atrás existir um casamento.
Quer dizer: para bem falar daquele, importa este conhecer. E mais: se o divórcio acarreta todo um processo de desmontagem, de ritualismo próprio, será porque o matrimónio, algo tem de estruturação sólida, contratual, capaz de gerar efeitos tais que merece, sem dúvida, todo um tratamento autónomo, nascido em regras e ditames, para a respectiva desvinculação.
E assim é, na verdade.
Porventura, procriados na civilização judaico-cristã-ocidental, mesmo sem dar por isso, estigmatiza-nos a indissolubilidade que caracteriza o matrimónio romano-cristão.
Daí que, contrariamente, a outro qualquer contrato, aqui, a dissolução faz-se rodear de exigências apertadas, 1 não só quando divórcio litigioso, já mesmo no mútuo consentimento.
Quiçá, a explicação provenha dos importantes efeitos que se lhe conhecem, entre todos, os filhos.
Será?
Mas não se passa o mesmo quando aqueles não existem? Logo o dizermos supra que tudo poderá provir do encastramento religioso. A sociedade civil não conseguiu ainda alhear-se da natureza sacramental do casamento que lhe foi instilado pela Igreja.
Por tal, figura-o com vestimenta tamanha, que jamais o faz nos demais contratos.
Não obstante, o «casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida ...», di-lo o art. 1577.º do C.C..
Já o mesmo era entendido no Código de Seabra, que em seu art. 1056.º, ensinava: «o casamento é um contrato perpétuo feito entre duas pessoas de sexo diferente, com o fim de constituírem legitimamente a família».
Assentemos: é um contrato mui especial. Parte-se para o direito civil com uma ideia religiosa, aliás, tão-só de uma crença, a cristã, de que aquele não consegue libertar-se.
A indissolubilidade, parece-nos, é a responsável pela dificuldade que é aposta no desquite.Page 14
Como pode, na verdade, dissolver-se o que é indissolúvel? Tão forte é a impressão cristã, que o direito, mesmo achando-o dissolvendo, faz rodear a correspondente extinção de especialidade específica, nas causas, como nos efeitos.
Não é que Cristo criou o casamento como uma união para toda a vida? Não que o tivesse «legislado» assim, mas sempre que perguntado assumiu a ligação carnal só em termos de indissolubilidade. 2
Surgindo esta como consequência inevitável do matrimónio. Diríamos mesmo como adveniência fatalística.
S. João Crisóstomo descreve o carácter enganoso das mulheres 3 e S. Gregório de Nizanza a bestialidade dos maridos.
Panaceia?
É doença incurável.
Quem se casa, terá que sofrer a «eternidade» sequencial. 4
Ou então: que não se case.
Por isso, um crescente número de monásticos, como fuga ao matrimónio.
De aprovação divina não podia ser combatido, mas sim evitado.
O eucratismo chegou mesmo a reprovar o casamento, defendendo o desprezo pela carne.Page 15
Esta tendência, porém, logo foi combatida por S. Paulo, «pois tudo o que Deus criou é bem, e nada se deve rejeitar se é tomado em acção de graças».
É. O casamento levou a melhor.
Para trás quedou-se o dualismo de S. João Crisóstomo: «o casamento é bom: sustenta o fraco e torna firmes os seus passos. Mas este apoio é inútil ao homem forte e robusto, e longe de ele ser necessário, só faria semear sobre o seu caminho mil obstáculos que entravariam a sua marcha e diminuiriam o seu mérito».
Ficou, pois, o casamento indissolúvel. Em todas as circunstâncias: na fidelidade, como no adultério. Ouçamos a palavra de S. Paulo aos Coríntios: «Quanto às pessoas casadas eis o que ordeno, não eu, mas o Senhor: que a mulher não se separe do seu marido - em caso de separação que não se volte a casar e que se reconcilie com o seu marido, e que o marido não repudie a sua mulher».
Mas não queremos que neste capítulo se fale, unicamente, da indissolubilidade; esta característica, não explicaria só por si, a institucionalização do matrimónio.
Importa ainda realçar o valor moral do casamento. Este que, para alguns, era incarnação do demónio. Para se atingir a ascese, recomendavam os Pitagóricos, a continência total, como meio de preparação para a revelação divina e a comunhão de Deus.
Estavamos num momento de incompreensão sobre o valor social e moral do matrimónio; que fronteira entre o casamento cristão e o pagão?
Se existe um denominador comum, fique o matrimónio para os pagãos e vote-se o povo de Deus à preservação da virgindade.
Esta sobreleva em muito o casamento; se este «é bom, a virgindade é ainda mais admirável...
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