Assento n.º DD61, de 31 de Julho de 1989

Assento 1 - O Acórdão deste Tribunal de 15 de Novembro de 1983 - agora recorrido decidiu subsistir a autogestão dos trabalhadores da sociedade CAFER, Lda., organizados na cooperativa REFAC. E, desse modo, vigorar o artigo 36.º da Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro, e a suspensão dos direitos de terceiros credores - como o autor Banco Pinto & Sottomayor -, através da ininvocabilidade de avales à CAFER. Assim, absolveu do pedido os avalistas.

Tratava-se do accionamento de livranças emitidas em 1971 pela sociedade, descontadas bancariamente e avalizadas por José Matos de Carvalho, José Aires de Carvalho e José Miguel Bragança, agora réus.

O anterior Acórdão de 25 de Janeiro de 1983 - o fundamento - considerou finda a autogestão e desaplicou o artigo 36.º Cessaria a suspensão e ininvocação de garantias e condenou os réus no pedido.

Em ambos houve identidade física de autor e réus. Mas acolheu-se diferentemente o mesmo facto do abandono em meados de 1977 do estabelecimento da CAFER pela REFAC, sem deixar património algum (resposta ao quesito 7.º).

Ante a discrepância, o autor pediu uniformização no sentido do acórdão-fundamento, considerando violados os artigos 1.º, 11.º, 14.º, 36.º, 39.º, 41.º, 43.º e 48.º da Lei n.º 68/78, revogando-se a decisão e condenando-se os réus.

Houve contra-alegação: o Ministério Público é favorável ao acórdão recorrido.

2 - O acórdão intercalar decidiu haver oposição na mesma questão fundamental de direito. E, não obstante uma particularidade de menor relevo, assim é, no essencial, como ressalta do parágrafo anterior.

Na verdade, a contraposição é clara e conflui na aplicação do citado artigo 36.º, ou seja, naquilo a que chamamos a suspensão das garantias dos credores (no caso, o banco).

A particularidade, entretanto, consiste em que no primeiro se trata de avales, e no segundo, de fiança, em sentido técnico.

Para quem entenda, e não é o nosso caso (retomaremos este ponto adiante), que aval e fiança não se diferenciam na prática (cf. artigo 32.º, § 1.º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, doravante indicada por LU), nenhumas dúvidas se põem já que o acórdão-fundamento se debruçara, justamente, num termo de fiança. E a 'particularidade' seria irrelevante.

Mas, ainda entendendo-se o aval como garantia diferenciada, continua a não haver modificação sensível. É que, como veremos, a dilucidação do problema esgota-se essencialmente na análise da Lei n.º 68/78. E, mesmo extravasando para institutos como a posse, a propriedade e o usufruto, continua a ser indiferente tratar-se de fiança ou aval.

A única coisa que sucede é que da adesão à tese do aval, como obrigação cambiária autónoma, resultam argumentos de reforço de uma das teses em presença. Mas que supõem a dilucidação de outras questões alheias à dicotomiaaval-fiança.

Diremos, concluindo este ponto, ser a mesma a questão fundamental na sua essência. O que é suficiente. Revestindo-se a 'particularidade' ou diversidade de simples carácter adjuvante.

3 - Por 'uma evolução de facto não regularizada' onde os trabalhadores assumiram o controlo de empresas ou estabelecimentos comerciais entre 25 de Abril de 1974 e Outubro de 1978 nasce a situação autogestionária (Lei n.º 68/78, artigo 1.º, n.º 1). Essa a linha histórica do novo instituto. Assim, para a Lei n.º 68/78, basicamente, autogestão é o assumir de um governo empresarial pelos trabalhadores (artigo 1.º, n.º 3). E isso através de uma evolução de facto, mesmo não credenciada governamentalmente [em teoria, é confirmável (artigo 3.º)] e revestindo qualquer forma.

Particularizando, a lei caracteriza-a, agora numa perspectiva mais tecnicista, como a situação de governo onde se dissociam ou fragmentam, de um lado, 'a posse útil e a gestão' no colectivo de trabalhadores e, de outro, a 'nua-titularidade' no proprietário, e até nova ordem (artigos 3.º e 10.º, n.º 3, entre outros). Ou seja, os trabalhadores adquirem por uma evolução de facto, sublinhe-se, a 'detenção e fruição de todos os bens', como outra posse qualquer (artigos 11.º e 12.º), ressalvados alguns efeitos, como, por exemplo, a usucapião (artigo 12.º, n.º 2), ressalva na linha da dissociação e independência posse-propriedade. Identicamente, aliás, quanto à gestão (artigos 14.º e 24.º).

A incipiente situação autogestionária, entretanto, tende a regularizar-se, mantendo-se, ou, como todas as coisas, a findar. A primeira modalidade é prevista no artigo 1.º, sob a fórmula 'não regularizada nos termos gerais de direito', confirmada no artigo 10.º, n.º 1, 'até à regularização definitiva', e é coroada no artigo 38.º, cujo capítulo é epigrafado, justamente, de 'Regularização definitiva da autogestão'.

E são três as modalidades aí consideradas: a) Definição (solução) quanto ao proprietário; b) Aquisição pelo Estado da 'nua-titularidade'; c) Aquisição da mesma nua-titularidade da empresa ou do estabelecimento pelostrabalhadores.

Não obstante a aparente taxatividade da enumeração - 'dará lugar a uma das seguintes situações' (as três referidas) -, a verdade é que ela não abrange todas as possíveis. E, desde logo, isso sucede quando o Estado, expropriando [artigo 43.º, alínea a)], o faça não só quanto à 'nua-titularidade' [hipótese supra, alínea b), a que chamaremos 'expropriação parcial' (artigo 45.º, n.º 1), mas proceda à 'expropriação total' 'da empresa ou estabelecimento nos termos gerais de direito', assim pondo fim à autogestão (artigo 44.º n.º 1). O que significa, como se disse além da regularização autogestionária, também o seu fim [outro exemplo da segunda modalidade é a definição positiva do proprietário afectado, com a reaquisição do direito, por acordo ou acção judicial (artigo 39.º, n.º 3)].

Logo, e é a primeira conclusão, a autogesão provisória tanto desemboca na definitiva como na sua morte jurídica. E essa morte sucede nos casos apontados, como porventura noutras situações.

Outra conclusão - a segunda - é que a autogestão nasce de uma evolução de facto, em princípio desaparecendo com uma evolução de sinal contrário.

4 - É neste contexto de vida e morte da autogestão que surgem as disposições dos artigos 34.º e seguintes, quanto aos direitos de terceiros.

Em princípio, ela, a autogestão, não prejudica os terceiros credores. Salvo, diz a lei, as particularidades seguintes (artigo 34.º), designadamente a suspensão de alguns dos seus direitos, como no artigo 36.º em causa.

Prevê-se aí, nesse capítulo IV, que, se o dono inicial tiver um património distinto, separar-se-ão as dívidas da empresa e as de outra origem, entre as quais as pessoas daquele dono (artigo 35.º, n.º 1). Esta separação ou autonomização de patrimónios corresponde à nova realidade existente propriedade, de um lado, e posse útil gestionária, de outro - e tem a ver com a equidade de beneficiar quem suporta os encargos; e, por outro lado, que quem foi privado dos benefícios não é justo suportar os segundos. Isto no tocante ao proprietáriooriginário.

Daí, em suma, os credores da empresa só deverem pagar-se pelos bens desta, não confundíveis com os do proprietário (artigo 35.º, n.os 2 e 3).

E daí ainda, e agora trata-se de um claro benefício à autogestão e aos devedores 'garantes' assim em moratória, que os credores vejam suspensos ou comprimidos os seus direitos relativamente a outros devedores que não a empresa (artigo 36.º). Por isso, os dizeres suspensivos enquanto durar a autogestão. Pois que, finda ela, dá-se a expansão normal do direito dos credores, como resulta, aliás, dos princípios gerais e do citado artigo 34.º A excepção do artigo 36.º, enfim, vigora só enquanto houver a situação jurídica pressuposta.

Excluímos, deste modo e desde já, o entendimento de 'durante a autogestão' significar 'enquanto o proprietário estiver privado da posse e gestão' ou 'dos bens que a integravam', como sugere Vasco Xavier (cf. Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 117, p. 251 e nota 25). Entendimento esse onde se implicita a ideia de regresso da propriedade originária, o que já vimos não ser verdadenecessariamente.

Pelo contrário, há na locução 'durante a autogestão' um claro sentido literal e de conteúdo jurídico, já visto, de vigência autogestionária. Ou seja, a provisória, a regularizada, mas não já a finda.

Excepciona-se, em todo o caso, a 'adaptação' do artigo 49.º, segundo o qual, finda a autogestão da Lei n.º 68/78, mas persistindo o seu figurino sócio-económico-político, torna-se definitiva a suspensão das garantias, em homenagem ou no seguimento da situação anterior de autonomia de patrimónios. Trata-se de um rumo diferente do concebido naquela lei, mas que se instala no tecido jurídico definitivamente.

Podemos assentar agora na terceira conclusão e que é esta: a suspensão dos direitos dos credores, com a ininvocação das garantias dadas por terceiros, existe enquanto...

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