Acórdão nº 89/22.1GBALD.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2024-03-20

Ano2024
Número Acordão89/22.1GBALD.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALMEIDA))

Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Competência Genérica de Almeida, do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, e após audiência de julgamento em processo comum com intervenção de juiz singular, proferiu-se a 31/10/2023 sentença em cujos termos o arguido

AA, viúvo, ..., nascido a ../../1983, natural de ..., filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., ...,

foi condenado, como autor de um crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º/1, do Código Penal (CP), na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de 8,00 €, e ainda, na parcial procedência do pedido de indemnização civil formulado pela assistente/demandante, DD, a pagar a esta a quantia de 300,00 €, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal e desde a data da sentença até integral pagamento.

2. Contra essa sentença vem o arguido interpor recurso em que, insurgindo-se contra a decisão em matéria de facto, sustenta ainda ter agido no exercício do poder/dever de correcção da filha e nos respectivos limites, sendo por isso excluída a ilicitude da acção, devendo por conseguinte ser absolvido; e, sem prescindir, que mesmo em assim se não entendendo, então, e sucessivamente, que sempre importaria a suspensão provisória do processo, cuja inadmissibilidade em fase de julgamento reputa de inconstitucional, que em caso de condenação deveria ter lugar dispensa de pena e, por fim, que cumpriria ter sido determinada a não transcrição da condenação no registo criminal. Das motivações de recurso extrai conclusões que são as seguintes:

«(…)

XIII – Aqui chegados, a conduta da assistente desrespeitou o pai (arguido), desobedecendo-lhe e violando o seu dever previsto no art. 1878.º/2, do Código Civil (CC), não respondendo aos seus telefonemas para jantar, mantendo-se em silêncio, sentou-se à mesa, não cumprimentou as pessoas, e dirigiu-se, depois a ele, dizendo-lhe vai-te foder.

XIV – A punição, salvo o devido respeito, deverá considerar-se legítima, porque o arguido é o pai da assistente e agiu com a intenção de a corrigir, dada a sua atitude desrespeitosa. A bofetada foi um castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa da filha e foi também atual.

XV – Se tivessem sido valoradas as declarações do arguido e da testemunha EE, que além de estar presente (como confirma a própria assistente), mostrou-se ser um depoimento sereno, sincero, lógico e sem hesitações, quanto ao circunstancialismo em que os factos ocorreram, teria de se concluir, salvo o devido respeito por opinião contrária, que o arguido agiu como forma de reprimir a filha pela atitude de desrespeito pela pessoa do outro (no caso, o pai).

XVI – Consequentemente, a punição física que o arguido infligiu à sua filha, cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do art. 31.º/1/2-b, do CP (exercício de um direito).

XVII – O arguido sempre negou a prática do crime de violência doméstica e sempre defendeu que os elementos probatórios obtidos em sede de inquérito, não permitiam, mesmo em termos de juízo indiciário, imputar ao arguido a prática de um crime de violência doméstica agravado, uma vez que, da prova constante do inquérito, era inequívoca a inexistência da prática de factos integradores de tal tipo legal de crime pelo arguido.

XVIII – A verdade é que assim não se entendeu e, neste momento, o tribunal vê-se confrontado com uma absolvição pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º/1-d/2-a, do CP, e condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de 8,00 €.

XIX – Nestas circunstâncias, não podemos deixar de notar a diferença de tratamento em relação aos demais processos e arguidos que beneficiaram da aplicação do instituto da suspensão provisória do inquérito.

XX – A inadmissibilidade da suspensão provisória do processo, nesta fase, considerando a situação do caso concreto (absolvição da prática de um crime de violência doméstica) ofende, de forma frontal, o princípio constitucional da igualdade previsto no art. 13.º, da Constituição da república Portuguesa (CR), na vertente do direito de igualdade processual do arguido, por existir justificação material para a diferenciação, a qual funda-se na pouca gravidade dos crimes e na “existência de provas simples e evidentes” da verificação e autoria do crime, legitimando essa simplicidade probatória uma aceleração processual também reclamada pela CR (no seu art. 32.º), na dimensão do direito do arguido a ser julgado em curto prazo, embora compatível com as garantias de defesa.

XXI – O arguido, reitera que a sua conduta se encontra excluída da ilicitude penal, não se conformando com outro entendimento. Porém, em todo o caso e sem prescindir, não tendo o tribunal tal entendimento sempre deveria ter ponderado a verificação das circunstâncias para a dispensa de qualquer pena e ainda para ordenar a não transcrição de qualquer decisão condenatória para o registo criminal do arguido.

XXII – A presente sentença viola as disposições dos art. 1878.º/2, do CC; 31.º/1/2-b, do CP; 364.º/1, 374.º/2, 410.º/2-c, 410.º/3-b, e 412.º/6, do CPP; e 13.º, da CR. »

3. Responderam o MP e a assistente, em ambos os casos pugnando pela integral negação de provimento ao recurso, com manutenção do decidido, sustentando no essencial o seguinte:

3.1. Da resposta do MP (síntese nossa)

I – Muito embora com efeito a expressão em causa, supostamente dirigida pela assistente ao arguido, tivesse sido “vai-te foder”, e não “filho da puta”, isso não altera o sentido da decisão, em todo o caso sendo indefensável a configuração do exercício de um direito como causa de exclusão da ilicitude, nos termos do art. 31.º/1/2-b, do CP, na medida em que o poder dos pais de correcção dos filhos nem é compatível com o intuito punitivo que foi o da bofetada empregue, nem em especial abarca a aplicação de castigos corporais.

II – A suspensão provisória do processo é mecanismo processual limitado às fazes de inquérito e instrução (art. 281.º e 307.º, do CPP), o que em nada contende com o princípio constitucional da igualdade (art. 13.º/1/2, da CR), e admiti-la em fase de julgamento seria mesmo, isso sim, incompatível com o princípio constitucional da natureza acusatória do processo (art. 32.º/5, da CR).

III – Não se verificam no caso os pressupostos de dispensa de pena, nem os específicos para os casos de ofensas à integridade física, como previstos pelo art. 143.º/3-a-b, do CP, nem os gerais da diminuta ilicitude do facto, da reparação do dano e da compatibilidade com as exigências de prevenção (art. 74.º/1-a-b-c/3, do CP).

IV – A não transcrição da condenação no registo criminal do arguido não é um dever do tribunal, a decidir em jeito como que ‘automático’, mas antes uma excepcional determinação facultativa, e que se o arguido pretende ver concretizada pode sempre em requerimento autónomo solicitar, cabendo-lhe concretizar os motivos disso.

3.2. Da resposta da assistente (conclusões pela própria formuladas)

«I – Com o devido respeito, o recurso apresentado pelo arguido não merece qualquer provimento.

II – O douto tribunal bem andou ao elencar como elencou os factos dados como provados e não provados, entendendo que não se lhes deve fazer qualquer reparo.

III – Ainda que o arguido pugne pela similaridade dos depoimentos prestados pelo arguido e pela sua companheira, a testemunha EE, tais não foram merecedores de credibilidade, porquanto foram claramente exagerados na tentativa de justificar um comportamento indesculpável.

IV – Nesse sentido, atenta toda a prova produzida – e ainda os demais factos conexos não postos em causa – não há razão para alterar a qualificação dos factos n.º 7, 8, 12, 13 e bb).

V – Inexiste qualquer direito ao abrigo do qual a conduta assumida e confessa pelo arguido possa ser enquadrada na al. b) do n.º 2 do art. 31.º do CP,

VI – pelo que não pode, de forma alguma, ser afastada a ilicitude da conduta perpetrada pelo arguido.

VII – De igual forma, de acordo com a prova produzida e com factos dados como provados, não é enquadrável a conduta da assistente numa qualquer violação de eventuais deveres enquanto filha.

VIII – Tal como não se pode aceitar que a violência seja o caminho para educar,

IX – quando é o próprio arguido que transcreve que devem ser adoptados métodos positivos de educação como o diálogo.

X – Atento o exposto, não se entende, nem se alcança como pode ser afastada a ilicitude do arguido,

XI – tal como não se entende como possa ser o mesmo dispensado de qualquer pena.

XII – A assistente, filha do arguido, é uma recém adulta, com 18 anos completados, que vivia a perda recente de sua mãe e que se encontrava abalada psicologicamente.

XIII – Ao arguido, pai da assistente, pela experiência de vida e pelas mais duas décadas já vividas, impunha-se um comportamento diferente para a mesma.

XIV – Contrariamente ao que se exigia, o arguido violentou a assistente, deixando-a molestada, angustiada, e pior do que tudo isso, sozinha.

XV – Não considerando tal suficiente, o arguido ainda mudou as fechaduras da sua habitação, assim impedindo que a assistente tivesse acesso ao seu lar, deixando-a desamparada.

XVI – Tal como dado como provado, ainda hoje a assistente não tem acesso à sua casa e, em consequência, aos seus mais elementares pertences pessoais.

XVII – Atento o exposto, não merece qualquer provimento o recurso interposto pelo arguido,

XVIII – não existindo qualquer causa de exclusão de ilicitude,

XIX – Ou qualquer direito que justifique a conduta tida pelo arguido.

XX – Assim, não devendo a qualificação dos factos n.º 7, 8, 12, 13 e bb), ou, em bom rigor,...

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