Acórdão nº 877/22.9TELSB-B.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2024-03-21

Ano2024
Número Acordão877/22.9TELSB-B.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito dos autos de inquérito com o n.º 877/22.9TELSB, do Ministério Público da Comarca de Lisboa e a correrem termos (actos jurisdicionais) no TCIC - Juiz 3, Lisboa - Tribunal Central Instrução Criminal, foi proferido, pelo Mmº JIC então em serviço de turno, em 25/07/2023, despacho que ordenou o arresto da totalidade da pensão de reforma do arguido AA, o qual veio a ser, depois, complementado com o despacho datado de 31/07/2023, proferido pelo Mmº JIC então em serviço de turno, em que se determinou que o arresto dos montantes da pensão de reforma abrangeria igualmente os montantes que tenham sido ou venham a ser transferidos da conta do ... ou da ... para outras instituições financeiras relativamente a contas tituladas pelo arguido.
»
I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tais despachos, deles interpôs recurso o arguido AA, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
CONCLUSÕES
SEQUÊNCIA
A. O Recurso vem interposto do despacho de 25/07/2023, completado por um outro de 31/07/2023, proferido nos autos à margem indicados, que decretou o arresto da totalidade da pensão de reforma do Arguido.
B. Todavia, como estes autos foram constituídos a partir de uma certidão extraída do proc. n.º 184/12.5T8LSB, têm de se ter em conta os antecedentes atos de apreensão e arresto dessa mesma pensão de reforma, revogados por acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, os quais vêm devidamente elencados no capítulo respetivo da motivação do recurso.
DA VIOLAÇÃO DO PRICÍPIO DO JUIZ NATURAL
C. O Juiz BB terá estado de turno no TCIC nos dias 17 e 18 de julho de 2023. Todavia, esteve impedido de dar sequência à promoção que lhe foi conclusa em 18/07/2023, uma vez que estava a presidir a interrogatórios demorados que tiveram lugar no proc. n.º 405/18.0TELSB (caso …), como o próprio reconhece a fls. 105 deste apenso.
D. Estando impedido na situação descrita — o que se terá prolongado até ao dia 25/07/2023 —, o Juiz BB devia ter aberto mão dos autos, a fim de que outro juiz de turno, designadamente o que estivesse escalado para o dia subsequente (19/07), pudesse tramitar estes autos. Porém, o Juiz BB reteve os autos, até estar disponível para o despachar, chamando a si a decisão sobre o arresto num momento em que já não era o juiz de turno.
E. O art.º 36.º, n.º 1, da Lei 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ) dispõe o seguinte: "Nos tribunais organizam-se turnos para assegurar o serviço que deva ser executado durante as férias judiciais ou quando o serviço o justifique". Daí decorre que o juiz de turno só pode assumir a prática de atos jurisdicionais relativamente ao período em que está de turno, o que obviamente não prejudica que, tendo iniciado a ponderação de um determinado processo e/ou uma diligência no âmbito desse processo, a não possa concluir fora do período do turno, como, de resto, em relação ao Juiz BB, terá acontecido com os atos praticados no chamado caso ….
F. O que o juiz de turno não pode é, estando impedido de apreciar um processo que, no turno, lhe é concluso — como o Juiz BB reconhece que estava —, reservá-lo para si (como se fosse coisa sua), para o despachar quando deixar de estar impedido. Os processos estão afetos ao Tribunal e não à pessoa do juiz.
G. Quando o Juiz BB verificou que estava impedido de despachar o processo que lhe estava concluso em 18/07/2023, atendendo à sua intervenção no chamado processo …, devia ter formalmente declarado tal impedimento, de forma a que o mesmo fosse despachado por juiz de turno não impedido. Quando tomou conta deste processo de arresto — 7 dias depois de se verificar o impedimento —, o Juiz BB já não era o juiz competente para julgar o arresto. Não era o juiz natural do processo.
H. Assim sendo, nessa sua intervenção, ocorre uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, al. e), do CPP, o que pode e deve ser declarado em qualquer fase do processo.
DA SUBVERSÃO DO ESTADO DE DIREITO
I. Por acórdão da Relação de Lisboa de 25/05/2023, foi revogado o despacho que decretara o arresto da pensão de reforma do Arguido (ademais proferido depois de ter sido revogado o despacho que ordenara a apreensão dessa mesma pensão de reforma). Não há, em termos substanciais, qualquer facto novo na promoção do arresto que veio a ser decretado em 25/07/2023 relativamente ao arresto que fora decretado em 28/10/2022.
J. Do probatório deste novo despacho constam menos factos dos que haviam sido elencados no despacho de 28/10/2022, porque, entretanto, houve a separação de processos, mas, em substância, os factos em causa aquando da prolação do despacho de 25/07/2023 já estavam compreendidos no despacho de 28/10/2022. A factualidade reportada no arresto de 25/07/2023, no que releva, já estava compreendida no âmbito do arresto decretado em 28/10/2022, particularmente o seguinte: i) o alegado pagamento dos salários do Arguido na ..., em montante de cerca de 1,2 milhões de dólares, como contrapartida dos favores efetuados à ... (e indiretamente ao ...); ii) os prejuízos causados pela conduta de AA aos residentes em Portugal, no valor de cerca de 1,2 mil milhões de euros, como consequência do pacto corruptivo firmado.
K. Por outro lado, a Relação de Lisboa já decidira não considerar verificado o perigo de dissipação (periculum in mora), uma vez que "está em causa uma prestação periódica e que, portanto, será sempre possível arrestar as futuras, caso essa dissipação comece a ocorrer".
L. Não havendo nada de novo em 25/07/2023, relativamente aos factos que já haviam sido objeto de apreciação em 28/10/2022, e não havendo igualmente qualquer facto novo que demonstrasse o perigo de dissipação da pensão de reforma do Arguido, o Juiz de Instrução BB violou ostensivamente o seu dever de acatamento da decisão proferida em via de recurso por um tribunal superior (o acórdão de 25/05/2023), a qual, de acordo com o art.º 4.º, n.º 1, da LOSJ, e bem assim com o art.º 205.º, n.º 2 da CRP, tinha a estrita obrigação de cumprir. E não observou o caso julgado (pelo acórdão de 25/05/2023).
M. Tentando justificar o injustificável, o Juiz BB invoca que, no arresto ora decretado, estariam em causa o valor da peita paga pela ... (os seus salários na ...) e os prejuízos causados aos residentes em Portugal no quadro do tratamento dos …, o que não teria sido ponderado no âmbito do arresto precedente. Acontece que a peita e os prejuízos invocados —e os factos a que se reportavam — haviam já sido considerados no despacho de arresto de 28/10/2022, como consta dos segmentos do decisório supra transcritos na motivação do recurso.
N. Acresce que o Juiz BB nem sequer se deu ao trabalho de explicar a razão pela qual desconsiderou o segmento do acórdão da Relação de Lisboa que decidira não haver risco de dissipação da pensão de reforma do Arguido, uma vez que se tratava de uma prestação periódica, a qual poderia sempre vir a ser objeto dessa providência, caso no futuro se viesse a verificar a ocorrência da dissipação. O Juiz BB tinha o estrito dever de o ter acatado.
O. Há ainda um outro dado inquietante: segundo o Ministério Público e o Juiz de Instrução estão em causa prejuízos causados ao Estado e aos residentes em Portugal no valor de 1,2 mil milhões de euros, o que teria resultado de um pacto corruptivo celebrado entre os co-Arguidos. Porém, nestes autos em que há outros arguidos constituídos — e alegadamente indiciados pela prática dos correspondentes crimes de corrupção ativa —, a ninguém mais foi imposta qualquer medida de garantia patrimonial, o que, numa avaliação objetiva, significa que o alvo é apenas o património do CC.
P. Tudo isto é muito triste, indigno e revoltante. Numa apreciação objetiva, considerando a ostensiva aparência dos factos, o ArguidoAA foi objeto de um ato retaliatório e mesquinho.
Q. O juiz a quo violou o seu dever de acatamento de uma decisão proferida por um tribunal superior, bem como o caso julgado consubstanciado nesse acórdão da Relação de Lisboa de 23/05/2023. Tal dever de acatamento resulta do art.º 4.º, n.º 1, in fine da LOSJ, bem como do art.º 205.º, n.º 2 da CRP. Por outro lado, o caso julgado decorre do acórdão de 25/07/2023, que julgou insubsistente o arresto da pensão de reforma do Arguido, nada de novo tendo ocorrido nos autos que fizesse ponderar uma situação de facto substancialmente diferente. Daí a ilegalidade do despacho recorrido.
R. A decisão recorrida consubstancia ainda um abuso de direito, através do qual o Juiz de Instrução, excedendo os limites impostos pela boa-fé (objetivamente considerados), serviu-se dos seus poderes para subverter o que fora decidido por um tribunal superior.
DA INEXISTÊNCIA DE FUMUS BONI JÚRIS
S. A promoção de arresto do Ministério Público elenca um arrazoado de factos, mas não convoca quaisquer meios de prova.
T. Aquando dos primitivos arresto e apreensão decretados em 25/01/2022 e 23/02/2022, o Ministério Público convocara uma extensa listagem de meios de prova (cfr. págs. 221 a 224 do despacho de 25/01/2022, sob a epígrafe "PROVA"), em que o Juiz BB se terá fundado.
Aquando do arresto decretado em 28/10/2022, estávamos perante um reforço do arresto decretado em 25/01/2022 e 23/02/2022, pelo que não tinha de se efetuar uma reapreciação do fumus boni juris.
U. Porém, no despacho ora recorrido, estamos perante um processo novo (decorrente da extração de uma certidão do referido proc. n.º 184/12) e um arresto alegadamente requerido com fundamento diferente (muito embora, na realidade, assim não seja), o que não permite que o Ministério Público não tenha de invocar, perante o novo juiz de instrução a quem caiba a decisão de decretar ou não o arresto, os meios de prova em que alicerça o requisito do fumus boni juris, invocação que não foi
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT