Acórdão nº 85/21.6IDLSB.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2024-01-10

Ano2024
Número Acordão85/21.6IDLSB.L1-3
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:


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I–Relatório:


Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular,
- “...”, com o NIPC 5.........7, com sede na ...;
- AA, casado, economista, filho de BB e de CC, natural da ..., nascido em .../.../1950, portador do Cartão de Cidadão n.º …., residente na ...,
Foram acusados, pronunciados, julgados e condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. nos artigos 105º/1, 22º/ 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e 73º/1, al. c), do Código Penal (CP), na pena especialmente atenuada de cento e setenta dias de multa, à taxa diária de € 60,00 a sociedade ... e de cem dias de multa, à taxa diária de € 50,00, o arguido AA,
Os arguidos apresentaram contestação, defendendo que, sendo o dolo requisito essencial para o preenchimento do tipo subjectivo do crime de abuso de confiança fiscal e não tendo eles agido com dolo, não cometeram o crime em causa.
Recorrem, agora, ambos os arguidos da referida condenação.

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II–Fundamentação de facto:

Na sentença recorrida foram considerados os seguintes os factos:

Provados

1.–A “...” é uma sociedade por quotas, portadora do NIPC 5.........7, com sede na ..., em Lisboa e que tem por objecto social a exploração de estabelecimentos de ensino particular, de todos os tipos e graus de ensino, podendo explorar qualquer outro ramo em que os sócios acordem.
2.–O arguido AA exerce as funções de gerente de direito e de facto da sociedade arguida desde 31 de Janeiro de 2011 até á presente data.
3.–Para efeitos de IVA a 1.ª arguida está enquadrada no regime normal de periodicidade mensal.
4.–No exercício da sua actividade, os arguidos procediam à cobrança de IVA aos seus clientes, estando obrigados a entregar tais quantias nos cofres do Estado, a quem pertenciam os montantes liquidados a esse título.
5.–Os arguidos enviaram, efectivamente, à Administração Fiscal, a competente declaração periódica referente ao mês de Junho de 2020, prevista no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do CIVA, tendo sido apurado que o valor do imposto a entregar ao Estado era de € 42.034,41.
6.–No entanto, os arguidos não fizeram acompanhar a referida declaração periódica do respectivo meio de pagamento.
7.–Acresce que tal montante não foi entregue ao Estado pelos arguidos no prazo legal, nem nos 90 dias subsequentes.
8.–Notificados para procederem ao pagamento da referida quantia, acrescida dos juros e da coima respectiva, mais uma vez abstiveram-se de o fazer, antes se apoderando de tal valor, o qual fizeram seu.
9.–Os arguidos bem sabiam que tal dinheiro, cobrado aos clientes a título de IVA, não lhes pertencia e que deveria ter sido declarado, devidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado, nos prazos legais.
10.–O arguido AA agiu em nome e no interesse da sociedade arguida “...”, bem como no seu próprio interesse.
11.–Ao não entregarem nos cofres do Estado o IVA mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinha direito, resultado que representou.
12.–Mais agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo, que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
13.–O arguido AA utilizou o valor do IVA, a que se faz referência em 5., para efectuar pagamento de salários aos empregados da arguida sociedade.
14.–Os arguidos “...”, e AA já procederam ao pagamento do valor em débito, a título de IVA, concernente ao período a que é feita referência em 5., no valor de € 42.034,41 e respectivos acréscimos legais.
15.–A sociedade arguida “...” celebrou um contrato com a ..., no âmbito do qual procede á gestão do infantário da ....
16.–A sociedade arguida “...” explora o DD que se dedica ao ensino pré-escolar, 1º, 2º e 3º ciclos do Ensino Básico, e é gestora do ... da .....
17.–Os estabelecimentos de ensino a que é feita menção em 16., têm capacidade para cerca de 860 alunos.
18.–A arguida sociedade pagava á Câmara Municipal de Lisboa, no ano de 2021, o montante mensal de € 39.770,06, a titulo de renda, com o arrendamento do espaço onde se encontra instalado o DD.
19.–A arguida sociedade teve, no mês de Abril de 2021, a despesa de € 3.444,00 com desenvolvimento de aulas de Engenharia, Artes e Criatividade, no DD.
20.–A arguida sociedade suportava, no ano de 2021, a despesa mensal de € 4.920,00 pelo serviço de vigilância humana que lhe era prestado pela sociedade ...
21.–No ano de 2020, a sociedade arguida teve a despesa anual de € 7.007,51, pelos serviços de medicina do trabalho.
22.–A arguida sociedade tem as seguintes condenações averbadas no respectivo registo criminal:
- foi condenada, por sentença datada de .../.../2019, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática, no ano de ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 1100 dias de multa á taxa diária de € 40,00, o que perfaz € 44.000,00;
- foi condenada, por sentença datada de .../.../2020, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática a .../.../2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 75 dias de multa á taxa diária de € 15,00, o que perfaz € 1.125,00. Por despacho datado de .../.../2021, foi julgada extinta, pelo respectivo pagamento, a pena de multa.
23.–O arguido AA possui, como habilitações literárias, a licenciatura em economia.
24.–Já exerceu as funções de administrador de uma Instituição Financeira.
25.–Actualmente encontra-se reformado, recebendo uma pensão de reforma, no montante mensal de € 6.000,00.
26.–Continua a exercer as funções de gerente da sociedade arguida.
27.–É pessoa com hábitos de trabalho.
28.–A esposa do arguido encontra-se reformada, recebendo uma pensão de reforma no montante mensal de € cerca de € 3.200,00.
29.–A esposa do arguido é responsável pela actividade pedagógica dos referidos estabelecimentos de ensino, o DD, e o ....
30.–O arguido tem dois filhos, que contam as idades de 49 e 52 anos, respectivamente.
31.–O arguido AA tem as seguintes condenações averbadas no respectivo registo criminal:
- foi condenado, por sentença datada de .../.../2019, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática, no ano de ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, com a condição de o arguido, no prazo de 5 anos, proceder ao pagamento á Administração Tributária, de parcela do montante das importâncias em divida á Administração Tributária;
- foi condenado, por sentença datada de .../.../2020, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática a .../.../2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 50 dias de multa á taxa diária de € 10,00, o que perfaz € 500,00. Por despacho datado de .../.../2021, foi julgada extinta, pelo respectivo pagamento, a pena de multa.

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Não provados:

Não se provou que:
a)-a sociedade arguida atravessou e atravessa momentos muitíssimo difíceis, fruto da contracção das dinâmicas económico-financeiras nacionais e globais e que se vieram a agravar com a pandemia de Covid-19, que existia em Portugal á data dos factos e que se prolongou para além dessa data;
b)-a sociedade arguida sempre se mostrou escrupulosamente cumpridora das suas obrigações fiscais, contributivas e contratuais;
c)-a grave situação financeira que a sociedade arguida agora ultrapassa se deve, exclusivamente, ao incumprimento dos pagamentos pelos seus devedores, o que, consequentemente, implicou a falta de liquidez da sociedade para proceder aos pagamentos que são devidos e que se agravou com a pandemia Covid-19;
d)-no âmbito do contrato referido em 15., não raras vezes, a ... se atrasa no pagamento dos serviços prestados pela arguida sociedade, gerando uma situação de instabilidade financeira na sociedade arguida;
e)-diversas vezes, os encarregados de educação dos alunos que frequentam o estabelecimento de ensino, não procedem ao pagamento das mensalidades que são devidas, levando, inclusivamente, a sociedade arguida a propor procedimentos de injunção de modo a conseguir obter o pagamento daquilo que lhe é devido;
f)-a falta de pagamento das mensalidades dos alunos que frequentam os estabelecimentos de ensino a que é feita menção em 16., contribui para a falta de liquidez da arguida sociedade para fazer face ás despesas;
g)-a sociedade arguida despendia á data dos factos, e despende actualmente, o montante mensal de cerca de € 29.000,00 com os vencimentos dos seus trabalhadores;
h)-a falta de pagamento atempado do montante de IVA, a que é feita menção em 5., se deveu á falta de disponibilidade financeira da sociedade arguida;
i)-tal falta de disponibilidade financeira adveio da falta de recebimento total, parcial, ou atempada, por parte da sociedade arguida de todos os montantes que lhe são devidos pelos seus devedores e da enorme crise financeira que a pandemia Covid-19 originou;
j)-a sociedade arguida passava por uma grave situação económica, pelo que teve de destinar tudo o que recebia a fazer face ás despesas necessárias ao funcionamento dos estabelecimentos de ensino;
l)-a liquidez de que a sociedade arguida dispunha era insuficiente para pagar salários e pagar também impostos, bem como para fazer face a todas as despesas inerentes ao dia-a-dia da sociedade arguida;
m)-a sociedade arguida passava por uma grave situação económica, pelo que teve de optar nos seguintes termos: ou
...

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