Acórdão nº 82/21.1GCVFR-B.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 14-12-2022

Data de Julgamento14 Dezembro 2022
Ano2022
Número Acordão82/21.1GCVFR-B.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. n.º 82/21.1GCVFR-B.P1


Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto
Nos presentes autos, a Meritíssima Juiz titular do Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira (Juiz 2), veio pedir a sua escusa de intervir no processo principal, invocando, para tanto que:
Foi deduzida acusação contra o ex-colega, Dr. AA, que ocupou de Setembro de 2014 até 2016 o lugar de Juiz 1 da 3ª Secção de Instrução Criminal de Aveiro, actual Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, na qual a subscritora ocupa desde aquela data até hoje o lugar de Juiz 2.
Por força dessas funções, cumprir-lhe-ia conhecer do requerimento de abertura de instrução que agora apresenta tendo por objecto essa mesma acusação em que lhe é imputado o crime de ameaça agravado previsto e punido pelo disposto nos arts. 153º/1 e 155º/1, a) e c), do Código Penal.
Ora, a subscritora conviveu pessoal e profissionalmente durante mais de 16 anos com referido o Dr. AA, trabalhou em processos de que o mesmo era titular no extinto 2º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira (anos de 1998 e 1999), compôs, como vogal, Tribunais Colectivos pelo mesmo também integrados, quando em funções no Círculo de Oliveira de Azeméis durante cerca de 6 anos (2008 a 2014), conviveu com o mesmo em almoços e jantares de colegas, realizados em restaurantes sitos na zona geográfica deste tribunal de Santa Maria da Feira (desde 1998).
Por outro lado, dele foi substituta legal e sendo por aquele também substituída; os gabinetes de trabalho ocupados por cada um eram contíguos e a convivência era diária.
Alega ainda a subscritora, que foi ouvida na qualidade de testemunha abonatória indicada pelo Dr. AA no âmbito de processo disciplinar instaurado pelo CSM em que foi visado.
Assim, entende que não pode deixar de antecipar que, aos olhos da comunidade jurídica e da comunidade em geral, seja posta em causa a sua isenção pelo facto de neles ser visado como arguido um ex-colega com o qual foi vista publicamente em convívio profissional e social, configurando esta factualidade motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a nossa imparcialidade.
Esclarece ainda que, com base nestes fundamentos ora aduzidos, foi já pela Relação do Porto concedida escusa à signatária relativamente aos processos 318/15.8GCVFR e 2080/20.3T9VFR, em que o Dr. AA era também arguido.
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O MP, ouvido para o efeito, entende-se ser manifesto que o pedido de escusa formulado deverá ser concedido, considerando que a proximidade funcional da Mª Juíz requerente com o então Juíz de Direito AA durante vários anos e o facto de ter sido sua testemunha abonatória em sede de processo disciplinar, o que é suscpetível de criar suspeita séria sobre a sua imparcialidade e isenção.
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Colhidos os vistos legais, sem necessidade de recolha de qualquer outro elemento, cumpre decidir.
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Direito

Sabemos que aos tribunais compete, enquanto órgãos de soberania, administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Nesta função, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art. 203º, da Constituição da República Portuguesa).
O princípio constitucional da independência dos tribunais impõe a independência dos juízes e a sua imparcialidade, qualidades igualmente garantidas pela Constituição da República Portuguesa (cfr. art. 216º).
Por seu lado, a consagração do princípio do juiz natural ou legal (intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas) surge como uma salvaguarda dos direitos dos arguidos, e encontra-se inscrito na Constituição (art. 32.º, n.º 9 "nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior"), com a excepção de casos especiais legalmente consentidos.
Assim, este princípio só pode ser afastado em situações-limite, quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, o ponham em causa.
Ora, entre esses outros princípios conta-se o da imparcialidade e isenção, devendo ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.
Por isso, só é lícito o recurso a tais mecanismos em situação limite, quando, como dispõe o art. 43.º, n.º 1 do CPP, a intervenção de um juiz no processo correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (n.º 1).
Na verdade, a independência dos tribunais pressupõe a exigência de os juizes 'não serem parte' nas questões submetidas à sua apreciação (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª ed., pág. 661).
Ao Estatuto dos Magistrados Judiciais foi aditado pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto, a disposição (artigo 6.º-C) que faz figurar o dever de imparcialidade como primeiro dever do juiz, configurando-o como o dever agir com imparcialidade, assegurando a todos um tratamento igual e
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