Acórdão nº 767/23.8T9VNG.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 08-11-2023

Data de Julgamento08 Novembro 2023
Ano2023
Número Acordão767/23.8T9VNG.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. n.º 767/23.8T9VLG.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Valongo – J2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto



I. Relatório:
No âmbito do Processo de Contraordenação n.º ...2..., a “Autoridade da Segurança Alimentar e Económica”, por decisão proferida a 02.11.2022, expedida por carta registada com aviso de receção a 06.12.2022, decidiu (transcrição):
“(…).
1. Face à prova produzida, e considerando que a arguida é um dos maiores grupos económicos instalados no mercado português, com mais de cerca de 25.000,00 trabalhadores e lojas distribuídas por todo o país, sendo notório que no exercício da sua atividade movimenta milhares de milhões de euros, conjugando tais factos com os princípios da adequação e proporcionalidade, decide-se condenar a arguida A..., S.A., a título de dolo, pela prática da infração de publicitar a venda com redução de preços, no pagamento de uma coima no valor de € 8.000,00 (oito mil euros);
(…).”

Notificada da decisão administrativa, a arguida apresentou, o que foi recebido a 10.01.2023, impugnação judicial, ao abrigo do disposto nos art.ºs. 59.º e seguintes do DL 433/82, de 27.10, pugnando pela nulidade da decisão condenatória proferida pela ASAE por omissão de imputação subjetiva e objetiva da infração à arguida.

O Ministério Público, a 26.01.2023, apresentou o recurso de impugnação da decisão final proferida pela ASAE, em sede de recurso contraordenacional, fazendo valer tal apresentação como acusação.

Foi proferida sentença, datada de 22.05.2023, tendo aí sido decidido (transcrição) (cf. fls. 91/92 dos autos):
“I.
Nos presentes autos de recurso de contraordenação é arguida “A..., SA”, com sede na Rua ..., Lisboa;
*
Sendo-lhe imputada a prática de factos consubstanciadores de infração ao disposto no art. 2.º, al. h) do DL n.º 28-B/2020 de 16/06 – diploma legal que estabelece o regime contraordenacional, no âmbito da situação de calamidade, contingência e alerta – punível nos termos do disposto no art. 3.º, n.º s 1, 4 e 5 do mesmo diploma legal, na sequência do que a autoridade administrativa – ASAE – lhe aplicou uma coima no valor de € 8.000,00 (oito mil euros), acrescida de custas – para o que considerou a elevada gravidade e alta censurabilidade da conduta.
*
Inconformada, interpôs a arguida recurso de tal decisão, concluindo pela sua nulidade, para o que convocou, em suma, a inexistência de factos, quer no auto de contraordenação, quer na decisão administrativa, sustentando que esta última se reconduz a conclusões de Direito.
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Proferido despacho nos termos e para os efeitos do art. 64.º, n.º s 1 e 2 do RGCO, não foi deduzida qualquer oposição a que o presente recurso fosse decidido sem necessidade de realização de audiência de julgamento.
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O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e válido.
O âmbito do conhecimento deste Tribunal assenta nas conclusões da recorrente.
II.
Dispõe o art. 58.º, n.º 1, do RGCO que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter, entre o mais, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas e a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão. Contrariamente ao sufragado pela recorrente, não somos a entender que a decisão administrativa – sendo esta a peça que, fazendo as vezes de uma acusação em processo penal, se nos afigura como sindicável nessa exata medida – padeça do vício que lhe assaca, e, deste modo, que seja omissa em factos propriamente ditos e pródiga em conclusões de Direito. Na realidade, e sendo certo que a referida decisão remete para os factos constantes do auto de contraordenação, da notificação da infração e da aplicação de medidas de polícia ao abrigo do DL n.º 28-B/2020 de 26/06, no que não vislumbramos uma qualquer irregularidade (veja-se a possibilidade de remissão para o auto de notícia em processo penal tramitado sob a forma sumária), o que se impunha à autoridade administrativa era a concretização do elemento subjetivo do tipo em apreço, Ora, percorrida a peça recorrida, concluímos que esta exigência se encontra satisfeita, sendo consabidos e, por isso, notórios, factos como a circunstância de a recorrente ser um dos maiores grupos económicos do país e de este se encontrar em estado de calamidade, determinante da publicação de legislação temporária que acautelasse o interesse da saúde pública, deste modo se surpreendendo explicada, em termos factuais, a negligência da conduta contraordenacional imputada.
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Ora, a primar a negligência, e reparo algum nos mereceria a decisão administrativa. Sucede que a autoridade administrativa, posteriormente aos considerandos que vimos de sumariar, se enreda numa evidente confusão entre dolo e negligência: no segmento dos factos provados integra a fórmula comummente utilizada no sentido de “a arguida ter agido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” (sic), própria do dolo; no segmento referente à “culpa do agente” (sic), e após repristinar aqueles mesmos considerandos, concluindo que a arguida “tinha o dever especial de cumprir todas as medidas temporárias e excecionais em vigor, o que não acautelou, colocando em risco a segurança e saúde pública, pelo que entendemos que a sua conduta é altamente censurável” – inculcando a negligência – repete a referida fórmula da atuação livre, deliberada e consciente – conforme acima notado, exclusiva do dolo; e, no segmento do dispositivo, condena a arguida “a título de dolo” (sic). É nesta dimensão que o alegado em sede recursória adquire relevo, sendo certo que a questão sempre seria de conhecimento oficioso, pois que inexistem na decisão ora em análise quaisquer factos que suportem o elemento subjetivo da contraordenação sob a forma de dolo, mas, tão-só, os suficientes para a consideração de uma atuação negligente. Verifica-se, pois, uma situação análoga à do art. 410.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, na qual se estatui a contradição insanável (…) entre a fundamentação e a decisão.
*
A este propósito, temos como singular a exposição preconizada no Ac. do TRL de 31/10/19 (in www.dgsi.pt), que, por esse motivo, cujo sumário nos permitimos reproduzir nos seus segmentos mais relevantes: “estando em falta, na decisão administrativa, a narração de factualidade concretizadora do tipo subjetivo da contraordenação que é imputada ao arguido, esse hiato, à luz da jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ n.º 01/2015 de 27 de Janeiro (in DR, I Série, 18, de 27/01/15), não pode ser integrado em julgamento, ou, neste caso, no recurso de contraordenação interposto para o Tribunal de 1.ª Instância e, logo, na sua decisão final, mesmo com recurso ao disposto no art. 358.º do Código de Processo Penal”, tratando-se de uma decisão “nula, porque omissa em factos concretizadores do tipo subjetivo contraordenacional imputado, e pela qual condenou, (…) [omitindo] a referência obrigatória no elenco dos factos no tocante aos elementos subjetivos, (…) sendo questão que não pode ser revertida por qualquer outro modo legal, ou seja, com a sanação de tal nulidade” (in www.dgsi.pt).
Ora, de acordo com o disposto no art. 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar, afigurando-se-nos inexistir qualquer obstáculo à convocação de tal normativo legal, por remissão permitida pelo art. 41.º, n.º 1 do RGCO, por forma a encontrar arrimo para o conhecimento da nulidade decorrente da falta de fundamentação que ora se debate. Por fim, e de acordo com o art. 64.º, n.º 3 do RGCO, o despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação. Analisados os respetivos n.º s 4 e 5, somos a considerar a inaplicabilidade das correspondentes previsões a hipóteses como a sub judice, na precisa medida em que sequer se do mérito da decidido se aprecia, em homenagem ao que cremos restar, como única solução aplicável, o arquivamento dos autos, neste particular, de resto, se afastando o RGCO da lei processual penal, ao consagrar uma tal possibilidade, sendo certo que o recurso ao direito subsidiário apenas se prefigura legítimo nos moldes do n.º 1 do art. 41.º daquele primeiro diploma legal.
III.
Pelo exposto, resulta procedente a impugnação judicial em apreço, porquanto, atentos os termos conjugados do art. 58.º, n.º 1, als. c) e d), e 64.º, do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, se constata a nulidade da decisão administrativa recorrida, em consequência do que se determina o arquivamento dos autos, nos termos do art. 64.º, n.º 3 deste último diploma legal.
Sem custas – art. 93º do RGCO.
Comunique à entidade administrativa – art. 70.º, n.º 4 do RGCO. (…)”.

Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 94/96 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1. O incumprimento dos requisitos descritos no nº 1 do art.º 58.º do RGCO implica a verificação da nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicável ao processo contraordenacional ex vi do art.º 41.º do primeiro dos referidos diplomas.
2. O Tribunal a quo decidiu tal questão por despacho, nos termos do disposto no art.º 64.º do RGCO, constatando a nulidade da decisão administrativa, nos termos conjugados do art.º 58.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 64.º do RGCO e dos art.ºs 283.º, n.º 1, alínea b), e 338.º, nº 1, do Código de Processo Penal ex vi do art.º 41.º, n.º 1, do RGCO.
3. Ora, existindo nulidade por não se mostrarem cumpridas as formalidades descritas
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