Acórdão nº 75898/20.5YIPRT.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2023-06-29

Ano2023
Número Acordão75898/20.5YIPRT.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2023:75898.20.5YIPRT.P1
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Sumário:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I. Relatório:
A..., Lda., pessoa colectiva com número único de matrícula e de identificação fiscal ...10, com sede em Matosinhos, instaurou acção judicial contra B..., Lda., pessoa colectiva com número único de matrícula e de identificação fiscal ...70, com sede em ..., Oeiras, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe o capital de €106.112,10, acrescido de juros de mora de €305,25.
Para o efeito alegou, em suma, que celebrou com a ré um contrato de fornecimento de bens e serviços, na sequência do qual, a pedido da ré, prestou-lhe os serviços descritos nas facturas que junta, mas a ré não lhe pagou o valor das correspondentes facturas, o qual ascende ao montante do pedido.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que não celebrou o contrato de fornecimento que a autora alega, não solicitou à autora, ao abrigo do alegado contrato, a prestação dos serviços ou o fornecimento dos mencionados nas facturas, nenhum bem ou serviço lhe foi fornecido ou prestado pela autora após a data de celebração do alegado contrato, não recebeu as facturas que a autora alega ter emitido, nem o seu pagamento lhe foi pedido.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e a ré condenada pagar à autora a quantia de €9.015,90, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa comercial desde a citação até integral pagamento.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1 - Vem o presente recurso interposto da decisão da Meritíssima Juíza a quo que que julgou o pedido parcialmente procedente.
2- Existe na decisão recorrida um, manifesto erro na apreciação da matéria de facto, e, ainda uma errónea aplicação do direito.
3- Efectivamente, a sentença recorrida não considerou assentes os factos 1 a 5 (factos não provados) que deveriam ter sido dado como provados, em virtude da existência de prova testemunhal e documental nesse sentido.
4 - A sentença recorrida violou os artigos 227.º, n.º 1, 562º, 563º, 762.º, n.º 2 e 798º todos do CC, porquanto entendeu que o incumprimento do contrato por parte de ré apenas implicava uma indemnização decorrente das despesas por esta sofridas e cuja prova de pagamento entendeu por exigível.
5 - Na verdade, o evento que obriga à reparação é o incumprimento: não o surgimento da obrigação inadimplida, embora seja evidente que, sem esta, nada teria sucedido.
6 - Deste modo, evidente se torna que a principal sanção estabelecida para o não cumprimento consiste, portanto, na obrigação imposta ex lege ao devedor de indemnizar o prejuízo causado ao credor, mas este prejuízo compreende tanto o dano emergente como o lucro cessante (artigo 564.º) – todo o interesse contratual positivo, na hipótese de a obrigação provir de contrato.
7 - O não cumprimento (inadimplemento ou inadimplência do devedor) da obrigação tem, assim, como principal consequência, abstraindo da realização coactiva da prestação, nos casos em que ele é viável (artigo 817.º do Código Civil), o nascimento de um dever secundário de prestar que tem por objecto, mas a não só a reparação dos danos causados ao credor, mas também a prestação debitória incumprida, no caso em apreço, o pagamento dos cursos de 2020.
8 – Portanto, todas as vantagens legítimas de que o contraente fiel foi despojado devem ser indemnizadas, incluindo as que adviriam do regular cumprimento do contrato: o chamado interesse positivo.
9 - Ora, a sentença recorrida apenas atendeu ao chamado interesse negativo, olvidando o interesse positivo.
10 - Por outro lado, acresce que é indiscutível que no cumprimento das respectivas obrigações, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem as partes proceder de boa fé.
11 - Age de boa fé quem o faz com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, por via de uma conduta honesta e conscienciosa, com correcção e probidade, sem prejudicar os interesses legítimos daquela (Ac. do STJ de 28/09/2006).
12 - Tanto na negociação/formação como no cumprimento/execução dos contratos e, bem assim, no exercício de direitos correspondentes, devem as partes conformar-se com o princípio da boa-fé (cf. artigos 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, ambos do CCiv).
13 - Diremos mesmo que tal comportamento, pode ser lido à luz do instituto jurídico do abuso de direito, que, como figura geral, está consagrado no artigo 334º do Código Civil, na vertente do denominado “venire contra factum proprium”, que se inscreve também no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
14 - Assim sendo, como efectivamente é, a apelada ao ter criado na apelante a confiança de que iria realizar os cursos de 2020, tendo inclusive agendado previamente datas para estes, não agiu esta de boa fé, tanto mais que até ao final de 2019 (altura em que os curso já estavam todos combinados e agendados) nunca abordou a questão da não realização destes cursos.
15 - Nada tendo mencionado, naturalmente inculcou na autora a confiança que os cursos de 2020 se iriam realizar, podendo esta actuar com sempre tinha actuado até então.
16 - Este comportamento da ré, violador do princípio da boa fé e da tutela da confiança, determina assim que a pretensão indemnizatória da autora seja legitima.
17 - Deste modo, deveria a sentença recorrida ter indemnizado a autora pelas vantagens legitimas que esta perdeu pelo incumprimento do contrato por parte da ré, devendo assim ter indemnizado a primeira no valor constante da factura cujos serviços, embora solicitados, a ré ilegitimamente prescindiu.
18 – Pelo que, deverá ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por uma que jugue a presente acção totalmente procedente por provada e condene a ré conforme peticionado em sede de petição inicial.
A ré respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso.
Nas suas alegações procedeu à ampliação do âmbito do recurso, nos termos do artigo 636.º, nºs 1 e 2, e interpôs recurso subordinado, nos termos do artigo 633.º do Código de Processo Civil.
Para o efeito formulou as seguintes conclusões:
Quanto à apelação
A. Pelos motivos detalhadamente descritos no corpo da alegação, relativamente ao recurso da matéria de facto:
a. O facto "[a]s facturas FAC1/19 e FAC1/20 tenham sido enviadas por correio para a ré pela autora" deve permanecer não provado;
b. O facto "[a] emissão da factura FAC1/19 por parte da autora resulte de um pedido da ré para a realização no ano de 2020 de 2 cursos intermédios de Cirurgia Laparoscópica, 1 curso avançado em Cirurgia Laparoscópica, um curso de histeroscopia, 1 curso de histerectomia, 1 curso colorectal" deve permanecer não provado;
c. O facto “[t]enha sido em Setembro de 2019 que a ré solicitou à autora o curso básico de Laparoscopia mencionado na Factura FAC1/19" deve permanecer não provado; e
d. Os factos "[a] autora tenha celebrado contratos com os seus fornecedores/formadores para a realização de cursos no ano de 2020 paro a ré” e “[t]enha desde logo procedido ao pagamento dos bens/serviços destinados a cursos a realizar no ano de 2020 para a ré" devem permanecer não provados.
B. No que diz respeito à matéria de Direito:
a. Resulta claro da Sentença, contrariamente ao que a Apelante pressupõe, que a Apelada não incumpriu o Contrato - não existindo qualquer obrigação de adjudicação de cursos -, sendo consequentemente inaplicáveis as considerações que a Apelante teceu em torno das disposições legais aplicáveis a um incumprimento que não existiu, não foi declarado na Sentença e a Apelante não se esforçou por demonstrar em apelação; e
b. A Apelada identificou uma situação de potencial conflito de interesses no final de 2019 e, de boa-fé, transmitiu-a, então, à Apelante e ao seu Beneficiário Efectivo, continuando conversações para ultrapassar o problema que em nada resultaram. Neste contexto, imputar à Apelada uma violação das regras de boa-fé não faz qualquer sentido;
c. Foi a Apelante que actuou ilicitamente e em abuso de direito ao pretender ser paga por cursos que (i) não se realizaram; (ii) que não lhe foram adjudicados; (ii) que a Apelada não estava obrigada a adjudicar-lhe; e (iv) num contexto em que tal adjudicação potencialmente exporia a Apelada a riscos nos seus processos de contratação pública decorrentes do referido potencial conflito de interesses.
Quanto à ampliação do objecto do recurso
C. Nos termos do artigo 636.º do CPC, a Apelada pode, na sua alegação e a título subsidiário, impugnar decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pela Apelante, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
D. A Apelante impugna a decisão de facto da Sentença, designadamente o respectivo facto n.º 11: "[o] curso básico de Laparoscopia mencionado na factura FAC1/19 foi solicitado pela ré".
E. Na motivação da Sentença não se fez qualquer específica referência ao meio de prova que permitiu que o referido facto fosse dado como provado.
F. Perpassados todos os depoimentos prestados nos autos que incidiram sobre esta questão, rigorosamente ninguém autonomizou o referido "curso básico de Laparoscopia mencionado na factura FAC1/19" dos restantes cursos incluídos na mesma factura.
G. Da motivação da Sentença, a páginas 8 e 9, resulta, em sentido aparentemente contrário ao que resulta provado no facto n.º 11, que: "... a não realização, no âmbito deste último contrato, de quaisquer cursos no ano de 2020 por decisão da ré [foi] comunicada à autora em
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