Acórdão nº 73/22.5PHAMD.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 13-10-2022

Data de Julgamento13 Outubro 2022
Ano2022
Número Acordão73/22.5PHAMD.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
No âmbito do processo de inquérito nº 73/22.5PHAMD, da 1ª secção do DIAP da Amadora, foi deduzida acusação, para julgamento em processo sumário e com intervenção do tribunal singular, contra AA, devidamente identificado nos autos, sendo-lhe imputada a prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal previsto e punido pelo artigo 3º, nºs 1 e 2 do D.L. nº 2/98, de 03.01.
Por despacho judicial de 8 de Fevereiro de 2022 [referência nº 135513060], com fundamento na omissão pela acusação da descrição de factos essenciais [descrição dos elementos subjectivos atinentes à culpa], foi esta rejeitada e determinada a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes.
É desta decisão que o Ministério Público vem interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
Concluindo, dir-se-á que:
1. No âmbito dos presentes autos, por despacho a Meritíssima Juiz recusou a recepção da acusação, por manifestamente infundada, nos termos do art.º 311.º, n.º 3 al. b) do Código Processo Penal, por não conter uma narração completa dos factos, no que se refere aos elementos subjectivos do tipo, concretizando que o despacho de acusação não continha todos os elementos subjectivos do tipo, mais concretamente por não referir, expressamente, que o arguido actuou de forma livre e voluntária.
2. Ao invés do alegado pelo Tribunal a quo, o despacho de acusação proferido cumpre, na integra, o disposto no art.º 283.º n.º 3 do Código Processo Penal, uma vez que narra, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
3. O crime de condução de veículo sem habilitação legal consuma-se a título doloso, sendo que, ao invés do defendido pelo Tribunal a quo, analisado o despacho de acusação recusado resulta, de forma clarividente, que se encontram descritas, de forma sistemática, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo, uma vez que ali é descrito, de forma peremptória, que o arguido conduziu um automóvel, num determinado dia, hora e local, bem sabendo que não era titular de carta de condução ou outro título que lhe permitisse a respectiva condução, consciente que tal comportamento era previsto e punido na lei como crime, e assumiu tal conduta com a intenção concretizada de atingir esse fim, ou seja, o arguido actuou com dolo directo, pretendendo atingir o fim a que se propôs, sendo que, assumiu tal comportamento porque quis e essa era a sua intenção, estando, necessariamente, livre porque caso não o estivesse, não desejava atingir esse fito, e por outro, actuou de forma voluntária, na medida em que, se pretendeu actuar de determinada forma, fê-lo porque assim o desejava e tal comportamento não se deveu a qualquer espasmo físico involuntário
4. Ora, se no despacho de acusação consta, de forma clarividente, que o arguido actuou de determinada forma, porque assim o quis, e actuou com esse intento, bem sabendo que a sua actividade ou conduta se encontrava prevista e era punida por lei como crime, conclui-se, necessariamente, que ao actuar da supramencionada forma, por um lado, fê-lo de forma deliberada e/ou voluntária, na medida em que era essa a sua intenção, por outro, que se encontrava consciente, uma vez que sabia exactamente o que se encontrava fazer e que a sua conduta era punível como crime, e por fim, que estava livre, pois, caso contrário, não tinha pretendido atingir esse fim, ou seja, se o arguido fosse impelido ou coagido a assumir determinado comportamento, esse fito era pertença e objectivo de terceiro. 5. Compulsado o teor da acusação, não se consegue perspectivar ou sequer conjectuar que a actuação do arguido, aquando da prática dos factos, não fosse com a intenção concretizada de praticar o ilícito pelo qual veio acusado, sendo incompreensível e/ou inexplicável entendimento ou interpretação diversa, na medida em que, quando alguém expressa que outrem, sabendo que vai incorrer na prática de um ilícito ao actuar de determinada forma, assume tais comportamentos com a intenção de os praticar, de forma clarividente pretende expor ou relatar que essa pessoa actuou com dolo directo ao assumir determinada conduta e que, necessariamente, se encontrava livre e consciente.
6. Nesta medida e apesar de não ter sido utilizada a fórmula usualmente empregue para imputar os elementos subjectivos do tipo ao arguido, ou seja, “…o arguido actuou de forma livre, voluntária ou deliberada e consciente”, não pode olvidar-se que foram utilizadas expressões diferentes mas com o mesmo significado e amplitude quando interpretadas de forma sistemática com todo o texto do despacho de acusação e que, salvo melhor entendimento, não podem nem devem ser objeto de qualquer interpretação restritiva ou limitativa.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não deixarão de doutamente suprir, ao rejeitar a acusação, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 283.º, n.º 3, al. b) e 311, n.ºs 2, al. a) e 3 al. b), todos do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, ser revogado o despacho proferido em 1.ª instância, ora recorrido, e substituído por outro que proceda a exame preliminar e designe data para realização de audiência de discussão e julgamento, por se encontrarem descritos, no despacho de acusação, todos os elementos, subjectivos e objectivos do tipo imputado ao arguido.
Fazendo assim, V. Exas., a tão costumada JUSTIÇA!».
*
O recurso foi admitido por despacho proferido a 13 de Março de 2022 [fls. 46 dos autos - referência nº 136090218], a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Pelo arguido não foram apresentadas contra-alegações.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pelo Exmº. Procurador-Geral Adjunto foi lavrado parecer, no qual, em súmula, acompanha a argumentação expendida pelo Ministério Público junto da 1ª instancia, concluindo pela procedência do recurso e revogação do despacho recorrido.
Cumprido o preceituado no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
As conclusões recursórias convocam apenas a questão de saber se a acusação cumpre os requisitos legais de que depende a sua admissibilidade ou, pelo contrário, é omissa relativamente à descrição dos elementos subjectivos atinentes à culpa, existindo fundamento para a sua rejeição.
Delimitado o objecto do recurso, importa conhecer a factualidade que releva para apreciação da decisão impugnada e que se reconduz ao teor da acusação e ao despacho de rejeição da mesma.
A) Factos com relevância para a decisão:
1) Em 02.02.2022 o Ministério Público deduziu acusação, com o seguinte teor (transcrição da parte que releva):
«Nestas circunstâncias e ao abrigo do disposto no art. 381°, n° 1, al. a), do C. Processo Penal:
- à distribuição para julgamento em processo sumário;
- substituo a acusação pela leitura do auto de notícia por detenção ao qual acrescento:
- o arguido praticou os factos bem sabendo que a condução do veículo motorizado na via pública, sem estar devidamente habilitado com carta de condução emitida por autoridade portuguesa ou reconhecida como tal que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículos em território nacional, lhe era vedada por lei e era
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