Acórdão nº 708/19.7PBOER.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-02-22

Data de Julgamento22 Fevereiro 2023
Ano2023
Número Acordão708/19.7PBOER.L1-3
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:

I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido MM, divorciado, arvorado na área dos lubrificantes (reformado), nascido a …/1951, na freguesia de .., concelho de …, filho de …. e …, residente na Rua …., foi absolvido da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível, pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal (CP) e do pedido de indemnização civil contra si deduzido por FD.
FD, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a condenação do mesmo, no pagamento da quantia de € 3.000, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, até efectivo e integral pagamento.
O arguido não apresentou contestação.
FD constituiu-se assistente e recorreu da sentença proferida.
*
II- Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1. No dia 14/07/2019, pelas 16 horas e 20 minutos, o arguido e o ofendido FD encontravam-se na Avenida …, em Paço de Arcos, área de Oeiras a jogar às cartas e iniciaram uma discussão por motivo relacionado com a queda do neto do ofendido.
2. Em circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido, muniu-se de um pedaço de loiça de casa de banho partido que estava dentro de um saco de entulho presente no local, tendo arremessado tal objecto contra o ofendido, atingindo-o no lado esquerdo da cabeça.
3. Após, o arguido abandonou o local.
4. O ofendido começou a sangrar, pelo que, foi assistido pelos Bombeiros Voluntários que o transportaram ao Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa.
5. O ofendido sentiu dor e ficou com feridas provocadas por corte no couro cabeludo, na região occipital e frontal esquerdas, e no segundo dedo da mão direita.
6. Mais ficou com cicatrizes na região do crânio com 3 cm e da face com 2 cm e sofreu lesões que demandaram 15 dias para a consolidação médico-legal, sem afectação da capacidade de trabalho, geral e profissional.
7. As cicatrizes de 3 cm uma e outra de 2 cm, foram entretanto desvanecendo-se.
8. O demandante é diabético e tem problemas cardíacos.
9. Posteriormente, o demandante foi retirar os pontos, no Centro de Saúde.
10. As dores e mau estar do demandante, perduraram mais de um mês.
11. O arguido recebe pensão de reforma no montante de € 672, mensais.
12. Vive com a companheira, igualmente pensionista, em casa da mesma.
13. Tem o 4.º ano de escolaridade.
14. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
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Factos não provados:
Não se provou que:
a) O arguido agiu com o objectivo de magoar o corpo do ofendido, de lhe produzir dor e lesões, o que quis fazer e efectivamente fez.
b) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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IIII- Fundamentação da aquisição probatória:
O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
« (…) Foram tidos em conta os documentos juntos aos autos: participação de fls. 8, elementos clínicos de fls. 83 e 84 e CRC actualizado.
O arguido, em sede de declarações, confirmou o circunstancialismo de tempo e lugar, bem como a existência de discussão com o ofendido e razões porque tal sucedeu, sendo que, não obstante confirmasse ter arremessado o objecto que veio a atingir aquele, se escudou em tal actuação para sua própria defesa.
Tomadas declarações ao ofendido/demandante FD confirmou os factos, a discussão e, bem assim, deu conta que há mais de um ano que não interagia com o arguido, deixando de jogar com o mesmo, não conseguindo dar uma explicação para que os factos tenham ocorrido do modo que descreveu.
Pese embora os elementos documentais juntos aos autos e analisados, bem como as declarações do ofendido/demandante, face às declarações igualmente prestadas pelo arguido, não logrou o tribunal convencer-se da maior credibilidade de umas face a outras.
Não logrou o tribunal firmar convicção no sentido trazido pelo arguido, quanto à sua actuação, só e apenas para obstar à actuação do ofendido, no entanto, atentas as declarações prestadas pelo ofendido, não logrou igualmente o tribunal firmar convicção, dada a descrição efectuada em relação à forma como já anteriormente ambos se relacionavam e o tempo que perdurava tal falta de qualquer interacção que tudo se tivesse passado sem qualquer razão/causa.
O que se apurou com segurança, daí a factualidade dada como provada, foi o circunstancialismo espácio-temporal, a existência de discussão e a actuação do arguido na pessoa do ofendido. Em relação ao mais, nomeadamente a vontade e determinação e consciência do arguido, não se logrou apurar, com a certeza exigida para a prova de tais factos, nem mesmo chamando à colação regras de experiência comum conjugadamente com demais prova – as únicas possíveis quando falece confissão – pois que, como se disse, dado o hiato decorrido desde que os arguido e ofendido já não interagiam, não se afigura ultrapassável a dúvida criada com a descrição efectuada pelo arguido.
Sendo que, em processo penal, no que se reporta a factos desfavoráveis ao arguido, sempre se imporia consignar que, na dúvida, temos de ter sempre presente o princípio do in dubio pro reu. Trata-se de um princípio que pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como o dolo e negligência do seu autor. Isto é, à insuficiência da prova - que equivale à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência de determinado facto - deve dar-se como não provado o facto desfavorável ao arguido. Ou seja, é indicado ao juiz que valore a favor do acusado a prova dúbia (neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, em Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, Stvdia Iuridica 24, pág. 11).
Este princípio traduz, assim, a convicção de que o Estado, através dos Tribunais, não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente, conforme esclarecedoramente defende Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., pág. 166, e isto porque, são mais gravosas as consequências que podem decorrer de uma incorrecta fixação de factos em processo penal.
Assim, não se mostrando possível firmar convicção certa e segura quanto à vontade e consciência do arguido, não podem deixar de subsistir dúvidas que impedem a fixação de tais factos como provados.
Quanto à ausência de antecedentes criminais registados, teve o Tribunal em consideração o conteúdo do C.R.C. actualizado junto aos autos, mais se consignando as condições pessoais do arguido e, os factos descritos pelo ofendido, quanto às consequências na sua pessoa, uma vez que a dúvida supra referida se prende com a situação casuística e desencadeadora da actuação e não com a falta de credibilidade merecida quanto às declarações prestadas por um ou pelo outro, nestes pontos. »
***
IV- Recurso:
O assistente recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«1. O Assistente não pode deixar de discordar da decisão absolutória prolatada;
2. De forma relevante, deu o Mmº Tribunal recorrido como não provado que o arguido agiu com o propósito de magoar o corpo do ofendido, de lhe produzir dor e lesões, e que agiu de forma livre, deliberada e consciente.
3. Trata-se, aqui, da não prova do elemento volitivo do tipo.
4. Ressalta da motivação expendida pelo Mmº Tribunal recorrido que o arguido confirmou o circunstancialismo de tempo e lugar, a discussão com o ofendido e a razão por que tal aconteceu, bem como o arremesso do pedaço de loiça de casa de banho partido, escudando-se o arguido na sua própria defesa.
5. Por outro lado, invoca-se que não foi possível formar convicção pela forma como o ofendido descreve como ambos anteriormente se relacionavam e que tudo se passou sem qualquer razão/causa.
6. Se bem entendemos, a dúvida inultrapassável emerge do facto do arguido ter alegado que agiu como descrito em prol da sua defesa, e que, segundo o assistente, tudo sucedeu sem causa aparente.
7. Afigura-se-nos, com o devido respeito por opinião diversa, que o Tribunal recorrido incorre em manifesta contradição nesta parte, pois, por um lado, não dá como provada qualquer agressão por banda do Assistente ao ofendido que justifique qualquer reacção,
8. E, por outro, dá como assente que a discussão se inicia por causa da queda do neto do Assistente.
9. Desde logo, não poderá, sequer, falar-se em legítima defesa, atenta a facticidade provada;
10. A causa da agressão está identificada e provada.
11. As consequências da mesma estão, igualmente, identificadas e provadas.
12. Verifica-se, nesta parte, salvo melhor opinião, o vício da contradição insanável, previsto na norma do artigo 410.º, n.º 2, b) do CPP,
13. Vício que resulta do texto da decisão, da qual ressalta que parte da motivação é inconciliável com a facticidade provada.
14. De outro lado, não se nos afigura que o Mmº Tribunal recorrido devesse ter incorrido numa dúvida inultrapassável quanto à verificação do elemento volitivo do tipo.
15. O elemento volitivo consiste na vontade de realizar o facto típico depois de o agente o ter previsto ou representado.
16. Tal elemento deve extrair-se a partir da facticidade apurada sita a montante, com recurso a presunções naturais e às regras da experiência e do normal acontecer.
17. O arguido, ao arremessar contra a cabeça do Assistente um pedaço de loiça de casa de banho partido, objecto reconhecidamente de natureza cortante, ou corto-contundente, de relevante perigosidade, tinha necessariamente que prever que iria magoar o ofendido,
18. E que tal conduta era adequada a provocar-lhe as dores e lesões dadas como provadas.
19. Como tal, parece impor-se a prova do elemento volitivo do tipo,
20. E,
...

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