Acórdão nº 7067/15.5T9VNG.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-04-27

Ano2022
Número Acordão7067/15.5T9VNG.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Processo n.º 7067/15.5T9VNG.P1

CONFERÊNCIA DE 27-04-2022. (Consumo de energia eléctrica após a cessação do contrato, não tendo a E... efectuado o corte do abastecimento - convolação de furto simples em apropriação de coisa achada – insuficiência da matéria de facto para a decisão de condenação - erro de julgamento quanto aos factos do elemento subjetivo – erro notório da apreciação da prova / procedência).
I
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos presentes autos de Processo Comum Singular n.º 7067/15.5T9VNG, do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, foi, em 17-12-2021, proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, tudo visto e ponderado:
A) No que concerne á parte criminal:
1. Absolver o arguido AA da prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal;
2. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa ou animal achados, previsto e punido pelo artigo 209.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à razão diária e cinco euros;
3. Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.
B) No que concerne á parte civil:
1. Julgo o pedido de indemnização cível formulado pela demandante procedente, por parcialmente provado e, em consequência, condeno o demandado / arguido a pagar à demandante onze mil seiscentos e vinte e um euros e setenta cêntimos;
2. As custas deste pedido de indemnização civil são da responsabilidade do demandado e da demandante, na proporção do decaimento, seja 87% para o primeiro e 13% para a segunda.” (ref.ª 431566808, de 17-12-2021).
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Descontente com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido AA, tendo apresentado a respetiva motivação e formulado as seguintes conclusões: (…)
*
Admitido e recurso, respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, concluindo do seguinte modo: (…)
*
Remetidos os autos a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, dizendo não acolher os argumentos vertidos na sentença e na resposta ao recurso, emitiu, fundamentadamente, parecer no sentido de que o mesmo merece provimento, na parte em que é alegada insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410.º do CPP), pelo que deverão enviar-se os autos à primeira instância para suprimento do aludido vício (ref.ª 15558877, de 18-03-2022).
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Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, nada obstando à apreciação do mérito do recurso em conferência.
II
As aludidas conclusões, resultado da motivação apresentada, delimitam o objeto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso que possam suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo quando o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995). Assim, passa a apreciar-se o recurso interposto, concretamente as seguintes questões:
- Insuficiência [para a decisão] da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP (conclusões 1 a 16).
- Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP (conclusões 17 a 19).
- Erro na apreciação da prova, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3, alíneas a) e b), e 4, do CPP, ao dar-se na sentença como provados os factos dos pontos 4 e 5 (que deveriam ser dados como não provados), sem respeito pelo princípio estabelecido no artigo 127.º do mesmo Código, não resultando dos pontos 1, 2 e 3 dados como provados os elementos objectivos tipificados no artigo 209.º, n.º 1, do Código Penal (conclusões 20 a 46).
Para melhor perceção e análise das questões colocadas pelo recorrente, importa reproduzir os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal recorrido, que se transcrevem (na íntegra). Assim,
A. Factos provados
Em sede de audiência de julgamento, provaram-se os seguintes factos:
A) Da acusação:
1. No dia 10 de setembro de 2009 foi celebrado contrato de fornecimento de eletricidade entre a sociedade E1..., SA, e o arguido, para o local sito na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia.
2. Sucede que o contrato cessou em 13 de dezembro de 2013.
3. Desde a data referida em 2. até ao dia 11 de dezembro de 2015 o arguido consumiu energia elétrica no valor de 11.621,70€.
4. Ao agir do modo descrito, o arguido fez sua aquela energia elétrica, apesar de saber que não lhe pertencia e que estava a agir contra a vontade da sociedade comercial ofendida, sua legítima dona.
5. O arguido agiu de modo consciente e voluntário bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
B) Do pedido de indemnização civil
6. Até à presente data não foi pago o preço da eletricidade consumida.
C) Da contestação
7. A demandante não procedeu ao corte da energia na data referida em 2.
D) Mais se provou
8. O arguido reside com a esposa e dois filhos, com 13 e 2 anos; trabalha como comercial, auferindo mensalmente a quantia de 1.200,00€
9. Paga mensalmente a quantia de 800,00€ relativa a dívida à Segurança Social.
10. É licenciado em Ciências do Desporto.
11. Do seu certificado de registo criminal nada consta.
B) Factos não provados
Resultou não provado:
a) O arguido, ou outra pessoa, mas a mando do arguido, em dia não apurado, mas posterior àquele 13 de dezembro de 2013, efetuou uma ligação direta entre a instalação elétrica da sua residência e a caixa de coluna da rede pública de distribuição de energia.
b) O Local era uma residência.
c) Em dezembro de 2013 foi o arguido informado que iria passar a ser o fornecimento de energia elétrica efetuada não pela E1..., mas sim pela E2....
d) Para o efeito foi remetida fatura final pela dita E1... que liquidava todos os consumos efetuados até dezembro de 2013, fatura essa que também foi paga.
e) Tal fatura e tanto quanto se recorda o arguido era no montante de cerca de 250,00€ ou 270€, que foi imediatamente liquidada integralmente.
f) A conduta do arguido fez a demandante incorrer em encargos de potência no valor de 1.536,16€ e em encargos administrativos no valor de € 70,70€.”
*
E o Tribunal recorrido fundamentou a sua convicção do seguinte modo (…):
Apreciando.
- Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP (conclusões 17 a 19): (…)
*
Procede-se, agora, à apreciação das restantes questões suscitadas, o que se faz de forma conjunta, atenta a interligação das mesmas no caso concreto (insuficiência [para a decisão] da matéria de facto provada e erro na apreciação da prova relativamente aos pontos 4 e 5 (elemento subjetivo) e verificação dos elementos típicos do artigo 209.º, n.º 1, do Código Penal):
Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP).
E a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada nos termos previstos no artigo 431.º do CPP, o qual estabelece que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; (…)”.
No termos do citado artigo 410.º, n.º 2, alínea a), o recurso “pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum (…) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;”.
Por outro lado, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do CPP, quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve especificar:
“a) Os concretos pontos de factos que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; (…)”.
Neste caso, “o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” (n.º 6 do art. 412.º).
Assim, a matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
a) no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no acima citado artigo 410.º, n.º 2, do CPP, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
b) na impugnação ampla a que se reporta o agora citado artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo Código, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada, produzida em audiência.
Mas quanto a esta última modalidade de impugnação - a ampla - o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa, ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art. 430.º do CPP), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito
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