Acórdão nº 68/23.1PALSB-A.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2024-02-07

Ano2024
Número Acordão68/23.1PALSB-A.L1-3
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, as Juízas, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por despachos proferidos em diligência de declarações para memória futura realizada em 5 de Dezembro de 2023, no âmbito do inquérito nº 68/23.1PALSB do Tribunal Central Instrução Criminal, Juiz 1, com vista à inquirição das testemunhas AA e BB, respectivamente, enteada e cônjuge do suspeito CC, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal, decidiu «(...) que não iria fazer a advertência prevista no artigo 134° do Código de Processo Penal, pois entende que o Sr. CC não é arguido constituído, pelo que tal advertência à testemunha não deverá ser realizada».
O Mº. Pº. interpôs recurso destas decisões, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões
- No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática do crime de violência doméstica, sendo vítima BB, cônjuge do denunciado/suspeito CC e do crime de abuso sexual de crianças agravado, sendo vítima AA, nascida a 10 de Junho de 2013, enteada do mesmo.
- Em cumprimento do disposto no artigo 33º, n.º 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e no artigo 271º do Código de Processo Penal, o Ministério Público promoveu a tomada de declarações às vítimas BB e AA e fê-lo sem que, previamente, o denunciado/suspeito CC tenha sido constituído arguido (por razões de discricionariedade táctica na investigação). Por essa razão, mais requereu o Ministério Público a nomeação de defensor ao denunciado/suspeito e a sua notificação para estar presente no acto, nos termos do disposto no artigo 64º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, com vista ao cabal exercício do direito ao contraditório.
O Ministério Público fê-lo, ainda, tendo em vista a recolha de prova suficiente que sustente a constituição como arguido do denunciado/suspeito CC, até para ponderar da necessidade e oportunidade de emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito, com vista à aplicação de medida de coacção diferente do termo de identidade e residência.
O Mmo. Juiz de Instrução, a quo, deferiu a tomada de declarações para memória futura das vítimas promovidas, em momento anterior à constituição como arguido do denunciado/suspeito CC e determinou a nomeação de defensor a este, para estar presente nas diligências agendadas.
Todavia, no início da tomada de declarações para memória futura das vítimas, encontrando-se presente o Ministério Público e o defensor do denunciado/suspeito CC, embora se verificassem as qualidades previstas no artigo 134º, nº 1 do Código de Processo Penal, não procedeu à advertência do nº 2 do mesmo dispositivo legal, com o fundamento da lei prever que tal obrigação apenas deve ser cumprida quando exista arguido e não denunciado/suspeito, como acontece no caso concreto.
- Salvo o devido respeito, que é muito, o Ministério Público não entende, desde logo, porque motivo o Mmo. Juiz de Instrução a quo, procedeu (e bem) à nomeação de defensor ao denunciado/suspeito, embora a lei preveja “arguido” e no que respeita à advertência nos termos do artigo 134º nº 2 do Código de Processo Penal não o fez, com o argumento de não haver arguido constituído, mas apenas denunciado/suspeito.
- Por outro lado, a realização das diligências em causa, com a omissão voluntária da advertência nos termos do disposto no artigo 134.e, n.º 2 do Código de Processo Penal, tem a consequência das declarações prestadas nestes moldes não poderem ser utilizadas como prova, mostrando-se inevitável, pelo menos, que as vítimas sejam novamente chamadas em sede de audiência de julgamento, a fim de colmatar tal falta, o que com as declarações para memória futura promovidas, de todo, se pretendeu evitar.
- Note-se que, mesmo no decurso do inquérito, e desde o seu início, que mesmo os órgãos de polícia criminal, por delegação de competências para a investigação, dão cumprimento ao disposto no artigo 134º nº 2 do Código de Processo Penal, desde logo, para evitar a prática de actos inúteis, um dos princípios basilares do processo penal.
- Em nosso entendimento, o Mmo. Juiz de Instrução ao não dar cumprimento à advertência prevista no artigo 134º, nº 2 do Código de Processo Penal, com o fundamento de não existir arguido constituído, muito embora, previamente, tenha procedido à nomeação de defensor ao denunciado/suspeito, que se encontrava presente no acto, fê-lo em violação do disposto nos artigos 32° n° 8, segunda parte da Constituição da República Portuguesa e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal.
- A possibilidade de um familiar próximo vir a ser constrangido a testemunhar contra outro perturba a confiança, fundada no afecto ou nas projecções sociais sobre o afecto devido, que é cimento da coesão desse elemento básico da sociedade.
- A falta de advertência, nos termos do disposto no artigo 134.e, n.º 2 do Código de Processo Penal, como se verifica na situação em crise, consubstancia uma verdadeira proibição de prova e não uma mera nulidade processual respeitante a uma prova admissível relativamente à qual se verificou o mero incumprimento de formalidades legais, porquanto a obrigação de esclarecimento da ex-cônjuge e da enteada, do denunciado/suspeito (ainda não constituído arguido), quanto à possibilidade de se recusar a depor constitui uma formalidade cuja inobservância redunda numa intromissão ilegal na vida privada, não podendo, em consequência, o depoimento obtido em violação dessa norma processual ser utilizado.
- Razão pela qual os despachos ora em crise, devem ser substituídos por outros, onde se determine a advertência das vítimas, nos termos do disposto no artigo 134º, nº 2 do Código de Processo Penal, no início da tomada de declarações para memória futura.
Destarte, em conformidade com o supra exposto, entendemos que deverá concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida, e em consequência, que seja designada data para a realização da diligência de tomada de declarações para memória futura requerida, às vítimas BB e AA, dando-se cumprimento à advertência prevista no artigo 134º nº 2 do Código de Processo Penal.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto, emitiu parecer no sentido de que:
Será de proceder o recurso em análise, revogando-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que designe data para tomada de declarações para memórias futura às vítimas/testemunhas AA e BB – respetivamente, enteada e cônjuge do denunciado – dando-se cumprimento à advertência prevista no Art.º 134º n.º 2 do C.P. Penal.
Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, face às conclusões do recurso, a única questão a decidir é saber se o Mmo. JIC deveria ter feito a advertência prevista no arts. 134º nº 1 als. a) e b) do CPP, às duas testemunhas cuja inquirição em declarações para memória futura foi iniciada em 5 de Dezembro de 2023, ou, se como decidiu, não tinha de a fazer, em virtude de ainda não haver arguido constituído como tal.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos a considerar, com relevo para a apreciação do recurso, são os seguintes:
No dia 22 de Janeiro de 2022, BB denunciou CC à PSP, 1ª Divisão Policial de Lisboa, por factos ocorridos na residência de ambos, sita ...
Foi então elaborada a correspondente participação policial pelos seguintes factos (transcrição parcial):
Nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionados, quando me encontrava de Graduado de Serviço neste RIAV denominado Espaço Júlia, compareceu a vítima a denunciar, que tinha sido vítima de Violência Doméstica, por parte do seu cônjuge.
A Vítima informou que,
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