Acórdão nº 6660/21.1T8LSB-A.L1-7 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-05-31

Ano2022
Número Acordão6660/21.1T8LSB-A.L1-7
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A [… LDA.] , com sede na Alameda … Lisboa, pessoa colectiva n.º 505… intenta contra B [ … COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, UNIPESSOAL, LDA.] , pessoa colectiva n.º 509…, com sede na Rua … Lisboa e C [ PAULO …], NIF …, residente na Rua …, Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando os seguintes pedidos:
a. A condenação da ré a transferir a propriedade do veículo para a autora ou que esta seja transferida pelo Tribunal.
Subsidiariamente,
b. A condenação solidária das rés a restituir, na íntegra, o valor recebido da autora, ou seja, 27 250,00 €, acrescidos dos juros de mora legais, a contar da citação.
Alegou, em síntese, que em 24 de Agosto 2018 adquiriu às rés o veículo automóvel, marca Volkswagen, modelo Sharan, com matrícula xx-xx-xx, pelo valor de 27 250,00 €, veículo que pertencia à 1ª ré mas cuja venda ocorreu no estabelecimento da segunda; o documento único automóvel não lhe foi entregue com a transferência da propriedade para si, mantendo-se o veículo em nome da P R (cf. Ref. Elect. 28722928 dos autos principais).
A ré B contestou suscitando a ineptidão da petição inicial, referindo que a própria autora afirmou que não teve qualquer intervenção no negócio que celebrou com a segunda ré, e a sua ilegitimidade passiva e impugnando a factualidade alegada na petição inicial, nomeadamente, que tenha existido qualquer parceria entre as rés para vender automóveis, sucedendo que vendeu o carro à segunda ré que não procedeu ao seu pagamento, pelo que pugna pela procedência das excepções deduzidas ou, assim se não entendendo, que se conclua pela nulidade do negócio celebrado entre a autora e a segunda ré, com a restituição do veículo e indemnização a fixar pelo Tribunal pelo desgaste do automóvel e pelos danos ao seu bom nome (cf. Ref. Elect. 29052626 dos autos principais).
No final da sua contestação, em sede de requerimentos probatórios, após indicar os documentos juntos e o seu rol de testemunhas, a ré B requereu o seguinte:
“V - Declarações de Parte
Vem, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 466.º do Código de Processo Civil, seja a 1.ª Ré, na pessoa do seu representante legal, admitida a prestar declarações de parte, a recair sobre toda a matéria de facto.
VI – Depoimento de Parte
Vem, ao abrigo do n.º 2 do artigo 452.º do Código de Processo Civil, requerer sejam a Autora e 2.ª Ré notificadas para prestar o depoimento de parte, a recair sobre toda a matéria de facto.”
Em 20 de Outubro de 2021 teve lugar a realização de audiência prévia, em que as partes tiveram oportunidade de se pronunciar sobre as excepções deduzidas, que, em sede de despacho saneador, foram julgadas improcedentes. Nessa data, foi ainda proferido despacho que, constatando a incompatibilidade entre os pedidos formulados, ordenou a notificação da autora para suprir as incoerências/deficiências enunciadas e sanar tal incompatibilidade, interrompendo-se a audiência prévia (cf. Ref. Elect. 409627035 dos autos principais).
Em 29 de Outubro de 2021, a autora apresentou petição inicial aperfeiçoada, concluindo pelo pedido de que seja proferida decisão que transfira a propriedade do veículo para a sua titularidade e, assim se não entendendo, que as rés sejam condenadas solidariamente na restituição do valor entregue, acrescido de juros (cf. Ref. Elect. 30687995 dos autos principais)
A ré B reiterou o por si alegado na contestação, requerendo a junção de documentos e o aditamento ao rol de testemunhas (cf. Ref. Elect. 30794077 dos autos principais).
A audiência prévia prosseguiu no dia 14 de Fevereiro de 2022, com identificação do objecto do litígio, enunciação de factos assentes e enunciação dos temas da prova, tendo sido proferido o seguinte despacho, que incidiu sobre os requerimentos probatórios (cf. Ref. Elect. 413067526 dos autos principais):
“1. Admitem-se os róis de testemunhas apresentados pelas partes de fls. 4 verso, 22, 39 verso e 44 dos autos.
2. Conforme resulta de fls. 22 verso dos autos, veio a 1.ª Ré requerer a tomada de declarações de parte à mesma, na pessoa do seu legal representante, a recair sobre toda a matéria de facto. Sucede, porém, que nos termos conjugados do disposto nos artigos 466.º n.º 2 e 452.º n.º 2 do C. P., a 1.ª Ré deveria ter indicado, de forma discriminada, os factos sobre os quais pretendia a tomada de declarações de parte, circunstancialismo esse que a 1.ª Ré manifestamente não observou. Nestes termos e, em face do exposto e, atento o disposto nos artigos 466.º n.º 2 e 452.º n.º 2 do C. P. C., não se admite a requerida tomada de declarações de parte à 1.ª Ré.
3. Também a fl. 22 verso dos autos, veio a 1.ª Ré requerer o depoimento de parte da A. e da 2.ª Ré, a recair sobre toda a matéria de facto. Sucede, porém, que nos termos do disposto no artigo 452.º n.º 2 do C. P., a 1.ª Ré deveria ter indicado, de forma discriminada, os factos sobre os quais pretendia o depoimento de parte da A. e da 2.ª Ré, circunstancialismo esse que a 1.ª Ré manifestamente também não observou. Nestes termos e, em face do exposto e, atento o disposto no artigo 452.º n.º 2 do C. P. C., não se admite o requerido depoimento de parte da A. e da 2.ª Ré.”
Inconformada com o assim decidido, a ré B veio interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 414883386):
a) Entendeu o Tribunal a quo que, as declarações de parte e os depoimentos de parte não podiam ser admitidos, em virtude da 1ª Ré não ter indicado, de forma discriminada, os factos sobre os quais pretendia a tomada de declarações de parte e os depoimentos de parte da Autora e 2.º Ré.
b) Tribunal a quo não dá a oportunidade da 1ª Ré vir suprir essa irregularidade, convidando-a a indicar tais factos de forma discriminada.
c) Tal como sucedeu com o convite de aperfeiçoamento da petição inicial à Autora na audiência prévia datada de 20/10/2021.
d) O Tribunal a quo não pode decidir sem que previamente tenha sido facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.
e) Logo a decisão recorrida é nula por manifesta violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes.
Termina pela procedência do recurso, devendo a decisão recorrida ser considerada nula ou determinada a sua revogação, sendo substituída por outra que admita as declarações de parte da primeira ré e os depoimentos de parte da Autora e segunda Ré, convidando a recorrente a indicar os factos sobre os quais estas deverão recair.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – OBJECTO DOS RECURSOS
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões da alegação da recorrente há apenas que apreciar se a decisão recorrida constitui uma decisão-surpresa e se a ré deveria ter sido convidada a especificar os pontos sobre os quais as declarações e depoimento de parte deveriam recair.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Cumpre, pois, aferir se era lícito ao Tribunal a quo indeferir as diligências de prova requeridas – declarações de parte da ré ..., Lda., na pessoa do seu legal representante e depoimento de parte da autora e da segunda ré – com fundamento na inobservância do estatuído no art.º 452º, n.º 2 do CPC, aplicável às declarações de parte ex vi art.º 466º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
As provas devem ser apresentadas, em regra, na petição inicial e na contestação, podendo os requerimentos probatórios apresentados pelo autor e pelo reconvinte serem alterados na sequência da contestação e da réplica - cf. art.ºs 552º, n.º 6 e 572º, d) do CPC.
Além disso, as partes podem ainda aproveitar a audiência prévia para procederem a alterações no requerimento probatório – cf. art.º 598º, n.º 1 do CPC.
Nos termos do art.º 411º do CPC, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Neste normativo sobressai o princípio do inquisitório que, porém, coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da auto-responsabilidade das partes, não podendo o juiz suprir, de modo automático, eventuais falhas de instrução imputáveis a alguma das partes, uma vez precludida a apresentação de meios de prova.
Assim, o princípio do dispositivo funciona quanto à alegação dos factos, continuando também a impender sobre as partes o ónus de indicação dos meios de prova, daí que sobre tais requerimentos deva recair uma apreciação judicial da sua admissibilidade.
Serve isto para dizer que a senhora juíza a quo podia indeferir o requerimento probatório quanto aos meios de prova que entendesse que não tinham qualquer virtualidade para a prova dos factos que carecem de demonstração ou que não reunissem os respectivos pressupostos legais, v. g., um depoimento de parte requerido relativamente a pessoa sem capacidade judiciária (cf. art.º 453º, n.º 1 do CPC).
Aliás, fê-lo no momento processualmente previsto para a apreciação dos requerimentos probatórios, ou seja, no contexto da audiência prévia e após ter
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