Acórdão nº 6266/21.5T8BRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2023-03-02

Ano2023
Número Acordão6266/21.5T8BRG.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: José Manuel Alves Flores
2ª Adjunta: Sandra Maria Vieira Melo
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I- RELATÓRIO:

AA, residente na Rua ..., ... ..., intentou a presente ação de processo declarativo comum contra a “Companhia de Seguros S... SEGUROS, S.A.”, com sede na Av. ..., ..., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 3.500,00€, relativa aos danos relativos à perda da sua viatura, com a matrícula ..-..-ST, perda essa ditada por um acidente de viação ocorrido no dia 23/11/2018, e em que foi também interveniente a viatura com a matrícula ..-..-PQ, segurada na ré, viatura que segundo a A foi a única causadora do sinistro, pretendendo ainda ser ressarcida do valor inerente à imobilização e privação do uso da sua viatura, à razão diária de 20,00€, a contar da data do acidente e até à data em que a ré lhe venha a pagar o supra referido valor de 3.500,00€, valor que liquidou, até à propositura da ação, na quantia total de 21.760,00€.
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Citada, a ré aceitou a culpa do seu segurado pela eclosão do sinistro, tendo impugnado a factualidade relativa aos danos reclamados, para o que aduziu que a autora só participou o acidente à sua seguradora, tendo a ré aceite, no âmbito da convenção IDS, que os danos sofridos pela autora fossem regularizados pela sua congénere “V... – Companhia de Seguros, S.A.”, do que a autora tomou conhecimento e aceitou, tendo-se a ré considerado desobrigada de proceder a qualquer diligência de apuramento ou regularização dos danos, não mais tendo sido contactada pela autora para pagamento de qualquer indemnização ou atribuição de um veículo de substituição.
Mais alega que à data do acidente era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao da autora pelo valor de 1.600,00€, pelo que, considerando o valor do respetivo salvado, foi posta à disposição da autora, pela sua congénere, a quantia ajustada aos danos por si sofridos, sendo que, competindo àquela sua congénere a regularização do sinistro, não poderá a ré ser responsabilizada pelo dano derivado da privação do uso, que desconhecia, tratando-se de um dano não indemnizável, dado que, com a perda da viatura, a privação do uso é eterna, inexistindo também o necessário nexo de causalidade entre o não pagamento do valor do veículo e a indemnização assim pretendida.
Ademais, alegou que a autora não sofreu a privação do uso do veículo sinistrado, uma vez que tinha à sua disposição outros veículos, sendo que se lhe impunha que, ao invés de perpetuar o dano, tivesse procedido à substituição do veículo sinistrado, para o que certamente dispunha de condições financeiras, excedendo os limites da boa-fé a sua pretensão de obter uma indemnização por privação do uso que excede mais de 13 vezes o valor comercial do veículo perdido, o que configura abuso de direito, tanto mais que a autora demorou quase três anos a instaurar a presente ação.
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Tramitados regularmente os autos foi proferida, a final, a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência, condeno a ré a proceder ao pagamento à autora da quantia de 1.293,00€, absolvendo a ré do demais peticionado.
Custas pela autora e pela ré, na proporção do seu decaimento, nos termos do disposto no art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à autora..”
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a A. interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

“1. O ponto BB) dos factos dados como provados, comporta matéria conclusiva e que, por via disso, não pode elencar os “factos provados/não provados”.
2. O ponto BB) (parte final) tem carácter meramente conclusivo, porquanto é mencionado que, desde a data do acidente e até hoje a autora:
- teve e tem sob sua plena disponibilidade o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ...;
- tendo, mediante o uso do referido veículo, podido realizar, como realizou e realiza ainda hoje, desde a data do acidente, todas as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia.
3. Ou seja, o conteúdo de tal ponto encerra, mais do que afirmações factuais, factos ou juízos de facto, asserções conclusivas/valorativas incidentes sobre questões do litígio, estando em causa expressões que não configurando, em si mesmas, factos materiais, se reconduzem à formulação de juízos conclusivos que antes se deveriam extrair dos factos materiais que os suportam e que se integram no thema decidendum.
4. Aliás, na própria decisão recorrida, o Tribunal menciona que a parte que consta do ponto BB) dos factos provados, configura uma conclusão:
“Ora, perante a referida constatação de que o BB era afinal o veículo de uso habitual do irmão da autora e a constatação de que o ... referido em BB. se manteve sempre registado em nome da autora até 30/12/2019, o tribunal logrou convencer-se que, contra o que a autora e a testemunha seu irmão procuraram fazer crer em julgamento, de facto, foi sempre o veículo ... o veículo de uso pessoal da autora”
5. Assim, o ponto BB) dos “factos provados” deverá ser eliminado, já que “em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum” - Ac. do STJ de 23.09.2009, Processo n.º 238/06.7TTBGR.S1, acessível em www.dgsi.pt.
6. POSTO ISTO, impõe-se, pois, expurgar da matéria de facto dada como provada o ponto BB) (parte final), uma vez que o mesmo encerra exclusivamente matéria de natureza conclusiva, conforme o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
7. Assim, o ponto BB) da factualidade provada deverá passar a ter a seguinte redação “Desde a data do acidente e até 30/12/2019, a autora teve registado em seu nome o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ...
8. Sem prescindir,
9. Na opinião da recorrente o caminho seguindo pelo Tribunal de 1ª Instância, no que à questão controvertida das necessidades de transporte da autora diz respeito, configura uma DECISÃO SURPRESA, porquanto, a solução alcançada pelo Tribunal, não se afigurava previsível, nem tampouco foi configurada por qualquer uma das partes no processo.
10. A decisão surpresa configura uma violação do princípio do contraditório, nos termos do artigo 3.º do Código de Processo Civil.
11. Conforme bem referiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-12-2019, processo 14227/19.8T8PRT.P1, que teve como relatora a Ex.ma Sra. Dra. Desembargadora Eugénia Cunha, disponível em www.dgsi.pt, referiu que: “(...) Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa[3]. A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art. 3º, em casos de manifesta desnecessidade (…). Há decisão surpresa se o juiz de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos[9], só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade (…).
12. Ora, descendo ao caso concreto constatamos que foi exatamente uma decisão surpresa que o Tribunal a quo proferiu, quanto à fundamentação tida em conta para dar como provado a parte final do facto BB) “e, desde a data do acidente e até hoje, a autora teve e tem sob sua plena disponibilidade o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ..., tendo, mediante o uso do referido veículo, podido realizar, como realizou e realiza ainda hoje, desde a data do acidente, todas as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia.”
Vejamos,
13. Na douta motivação do Tribunal a quo, é visível que alcançou a sua convicção e raciocínio lógico, no que à parte final do facto provado BB) diz respeito, no seguinte: “(...) As necessidades de transporte da autora (factualidade constante de P.) foram em uníssono declaradas pela própria e pelas testemunhas CC e DD, de forma não contrariada por qualquer prova produzida pela ré, não se tendo o tribunal, contudo, convencido que, à data do acidente, essas necessidades de transporte fossem supridas com o veículo ST, que se perdeu com o acidente, tal como o declararam as testemunhas arroladas pela autora, uma vez que tais declarações acabaram por ser frontalmente contrariadas pela prova objetiva carreada para os autos. Desde logo, dos dizeres dos emails que a autora endereçou à sua seguradora resulta evidenciado que o veículo sinistrado nos autos, apesar de registado em nome da autora, seria afinal utilizado normalmente pelo seu irmão, nas suas deslocações para o trabalho (veja-se o email de fls. 12 onde a autora menciona “o meu irmão não tem viatura de momento para se deslocar para o trabalho, ..., daí pedir urgência na resolução deste processo”), sendo que foi exatamente quando o veículo seguia sob condução do dito irmão da autora que veio a dar-se o acidente (vide participação amigável de fls. 37 verso) e foi exatamente em nome do seu irmão que vieram a ser emitidas as faturas de deslocação em táxi de que a autora procurou...

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