Acórdão nº 5637/19.1T8VNF.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2022-02-10

Data de Julgamento10 Fevereiro 2022
Ano2022
Número Acordão5637/19.1T8VNF.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. K. Z. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra X – Companhia Portuguesa de Seguros, SA, e Y Portugal – Companhia de Seguros, SA, formulando os seguintes pedidos:

«a) Devem as 1ª e a 2ª RR serem condenadas a reconhecerem a ocorrência do sinistro de 24 de Março de 2018, em virtude da forte pluviosidade que se fez sentir, de forma absolutamente anormal e imprevisível, o que provocou o ruir do muro de suporte, tornando o imóvel segurado inabitável, verificando-se, assim, os requisitos indispensáveis ao preenchimento das condições necessárias para que sejam condenadas a indemnizar a A.
b) Devem as 1ª e 2ª RR serem condenadas a reconhecerem que o sinistro descrito, se encontra enquadrado nas coberturas garantisticas dos contratos de seguro celebrados com a A.
c) Deve declarar-se a nulidade das cláusulas dos contratos de seguro que, excluam a obrigação de indemnizarem a A., pela decorrência do sinistro em crise nos presentes autos.
d) Devem a 1ª e 2ª RR serem condenadas, solidariamente, ao pagamento à A. da quantia de € 43.500,00 (quarente três mil e quinhentos euros), necessários despender para a recuperação/reparação o imóvel, acrescida de juros vincendos, contados desde a citação até efectivo pagamento.
e) Devem a 1ª e 2ª RR serem condenadas a indemnizar a A. em € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais;
f) Serem as condutas da lª e 2ª RR comunicada ao Instituto de Seguros de Portugal para instauração do respetivo procedimento contraordenacional».

Para o efeito, alegou a ocorrência de um sinistro – o ruir de um muro da casa da Autora em consequência de um fenómeno atmosférico – coberto pelos contratos de seguro que celebrou com as Rés e que tal evento lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais.
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As Rés contestaram, impugnando parte dos factos alegados pela Autora e alegando a existência de pluralidade fraudulenta de seguros.
A Autora respondeu à matéria de excepção invocada pelas Rés.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho-saneador, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizada a audiência final, proferiu-se sentença a «julga[r] parcialmente procedente a acção e, em consequência:

a) Reconhe[cer] a ocorrência do sinistro de 24 de Março de 2018, em virtude da pluviosidade que se fez sentir, o que provocou o ruir do muro de suporte, tornando o imóvel seguro inabitável;
b) Declar[ar] que o sinistro descrito se encontra enquadrado nas coberturas garantísticas dos contratos de seguro celebrados com a Autora;
c) Declar[ar] a nulidade das cláusulas referidas nos pontos 73 e 76 dos Factos Provados, no segmento em que exigem a verificação de precipitação atmosférica de intensidade superior a 10 milímetros em 10 minutos, no pluviómetro;
d) Conden[ar] as Rés, “X Companhia Portuguesa de Seguros, S.A.”, e “Y Portugal – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagarem, solidariamente, à Autora, K. Z., a quantia que se vier a liquidar a título de indemnização correspondente ao custo da reparação dos danos referidos nos pontos 34 a 39 dos Factos Provados, até ao limite máximo de € 43.500,00».
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1.3. Inconformadas, as Rés interpuseram recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1) As Rés não se conformam que o douto Tribunal a quo tenha propugnado pela inexistência de exoneração da responsabilidade com fundamento no artigo 133.º, n.º 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro porquanto estas «não alegaram – e também não demonstraram – a ocorrência do elemento subjetivo exigido pelo art. 133.º, n.º 2, do RJCS».
2) Acresce que na decisão proferida não foi considerada a franquia contratualizada para as coberturas aplicáveis no contrato de seguro celebrado com a Ré Y no valor de 10%.
3) Conforme resulta da sentença proferida, nos presentes autos estão em causa dois contratos de seguro com idêntico objeto, concretamente definido nos factos provados n.ºs 15 e 23 (proteção do direito de propriedade da Autora, ora recorrida, sobre o imóvel melhor descrito nos autos), com coincidência temporal no funcionamento das respetivas garantias e idêntico tomador de seguro (a Autora, agora recorrida).
4) A ratio do artigo 133.º, do RJCS é evidente: estando em causa uma área especialmente suscetível a fraude, se for possível estabelecer que o tomador dos contratos de seguro procurou enriquecer o seu património por via da execução fraudulenta de contratos de seguro plurais a sanção legalmente imposta é a da total desoneração da responsabilidade das entidades seguradoras envolvidas, como critério dissuasor da fraude.
5) Pelo que o apuramento do caráter fraudulento na omissão do dever de informação do tomador do seguro tem especial relevo para a aplicação das consequências estatuídas pelo legislador sobre a situação de pluralidade de contratos de seguro.
6) «Esta intenção fraudulenta é um elemento puramente subjetivo, cujo apuramento decorrerá certamente de elementos objetivos casuísticos, de entre estes podendo salientando-se a solicitação de mais que uma indemnização após produção do sinistro, mas que não é confundível com esta.» – João Paulo Raposo, “Pluralidade de seguros: Conceito, extensão e valência, in Julgar Online, Abril de 2016, citado na douta sentença nas pp. 118-119.
7) A intenção fraudulenta é um elemento subjetivo de difícil apreensão pelo julgador, precisamente por ser composto por uma estrutura psicológica impossível de se aferir por prova direta, pelo que a prova da intenção fraudulenta terá de ser indireta isto é, assente em determinadas ilações retiradas das regras da experiência comum.
8) «O meio probatório por excelência a que se recorre na prática para determinar a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas, nem tão pouco a confissão auto inculpatória do sujeito ativo mas a aplicação das regras da experiência – premissa maior – aos factos previamente provados e que constituem a premissa» - in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 2753/06.3TAVIS.C1, 03/03/2010, sendo relator ALBERTO MIRA.
9) JUAN GRAU definiu como elementos objetivos indiciadores do caráter fraudulento no âmbito da pluralidade de contratos de seguro a reclamação da indemnização a todas as seguradoras sem que se comunique a nenhuma a existência das restantes e conhecendo a situação de pluralidade, o segurado responda negativamente aquando do preenchimento do questionário do novo seguro sobre a pré-existência de outro seguro que cubra o mesmo risco – in El Seguro Múltiple, Madrid: Editorial Tirant Lo Blanch 1998, p. 68.
10) Também JOÃO PAULO RAPOSO extrai esta intenção fraudulenta na solicitação de mais que uma indemnização após a produção do sinistro - in “Pluralidade de seguros: Conceito, extensão e valência, in Julgar Online, Abril de 2016, pp. 59-60.
11) Nos artigos 3.º a 8.º, inclusive, da contestação das Rés, foi alegada a ocultação da pluralidade de contratos de seguro por parte da Autora aquando da celebração de cada um dos contratos e bem assim, também se refere essa ocultação aquando da participação do sinistro a cada uma das Rés.
12) Nos artigos 10.º a 14.º da contestação das Rés foi alegada a intenção fraudulenta por parte da Autora, mais se dizendo que os elementos objetivos indiciadores dessa fraude foram, inclusivamente, confessados pela própria no seu articulado inicial – conforme artigos 14.º da contestação de fls e 73.º da douta petição inicial.
13) Os factos essenciais que constituíam a exceção de pluralidade de contratos de seguro invocada foram suficientemente alegados e devidamente percecionados pela Autora, que a eles reagiu em articulado próprio, bem como foram igualmente bem percecionados e interpretados pelo douto Tribunal a quo, que em momento algum manifestou a necessidade de complemento ou esclarecimento dos factos articulados na contestação das Rés e aquando da prolação da sentença revelou ter compreendido totalmente o alcance e sentido da exceção invocada.
14) Tivesse aquele douto Tribunal dúvidas sobre uma qualquer suposta imprecisão na matéria alegada por parte das Rés, tê-las ia convidado ao aperfeiçoamento do respetivo articulado nos termos do artigo 590.º, n.º 3, do C.P.C., o que não fez.
15) O Tribunal a quo julgou provado que:
- Após a ocorrência do sinistro, a Autora contactou com as Rés com a finalidade de que as mesmas assumissem as consequências do mesmo (facto provado n.º 42);
- A 28 de março de 2018, a Autora enviou à 2.ª Ré a respetiva participação de sinistro, via email (facto provado n.º 43);
- A Autora comunicou à 1.ª Ré a ocorrência do sinistro (facto provado n.º 52);
- Em setembro de 2017, a Autora subscreveu a proposta referida em 17 e não comunicou a existência do contrato referido em 14 (facto provado n.º 63);
- Nem posteriormente deu conhecimento à 1.ª Ré do contrato referido em 18 (facto provado n.º 64);
- Quando participou o sinistro à 2.ª Ré, a Autora não comunicou a existência do contrato referido em 14 (facto provado n.º 65);
- Aquando da participação junto da 1.ª Ré, a Autora não comunicou a existência do contrato referido em 18 (facto provado n.º 66);
- Desconhecendo a situação de pluralidade, ambas as Rés contrataram empresas de peritagens para averiguação do sinistro aquando das participações da Autora (facto provado n.º 67).
16) Pelo que da factualidade provada extrai-se, por um lado, o elemento objetivo: a omissão da situação de pluralidade, e bem assim, também se extraem todas as manifestações objetivas indiciadoras da intenção fraudulenta por parte da A., evidenciando o propósito de enriquecer injustamente à custa do sinistro participado.
17) Só a própria A. podia produzir prova direta com vista à convicção do douto Tribunal a quo sobre a intenção fraudulenta.
18) Com a decisão proferida aquele douto Tribunal...

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