Acórdão nº 5037/14.0TDLSB.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-01-25

Ano2023
Número Acordão5037/14.0TDLSB.L1-3
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam – em conferência – na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – INTRODUÇÃO
O Ministério Público e o assistente/demandante BANCO XXX, (“XXX”) vieram reclamar para esta conferência da decisão singular proferida pelo Desembargador Relator, datada de 31 de Outubro de 2022, a qual remeteu as partes para as instâncias cíveis no que concerne às questões cíveis do processo.
Em tal decisão foi decidido:
“Nos autos apensos foi julgado improcedente o incidente de habilitação de herdeiros.
Não obstante o ali decidido nenhum interveniente se apresentou a iniciar novo incidente com vista a fazer entrar na lide eventuais herdeiros do finado arguido JR
O incidente destinava-se a fazer prosseguir a instância cível. Os autos, na parte remanescente, não podem permanecer eternamente parados a aguardar uma habilitação que pode nunca ter lugar.
Nos termos do artº 82º nº 3 do C.P.P. “O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal”
Ora, no caso concreto, as questões suscitadas pelo pedido de indemnização, mormente a necessidade de habilitar herdeiros, geraram incidente que retarda intoleravelmente o processo penal pois que se mostra imperioso prosseguir os autos com a decisão dos recursos pendentes, os quais aguardavam a decisão do incidente.
Assim sendo, declara-se retomada a instância, cessando a sua suspensão, e remetem-se as partes para os Tribunais civis para aí dirimirem as questões cíveis provenientes do pedido de indemnização civil.
(…)
Notifique”
A fim de sustentar a sua pretensão o Ministério Público refere no requerimento da reclamação:
“O despacho em reclamação entende que, "no caso concreto, as questões suscitadas pelo pedido de indemnização, mormente a necessidade de habilitar herdeiros, geraram incidente que retarda intoleravelmente o processo penal pois que se mostra imperioso prosseguir os autos com a decisão dos recursos pendentes, os quais aguardavam a decisão do incidente".
A decisão singular em reclamação não foi proferida pelo Exmo. Senhor Juiz-Desembargador Relator no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros, mas sim nos autos principais e nestes foi já proferido acórdão pelo TRL, no qual, além do mais, foram apreciadas e decididas as questões relativas à instância civil, tendo sido mantida a decisão proferida pelo acórdão do tribunal da primeira instância, o qual julgou procedentes e provados os pedidos de indemnização civil, deduzidos pelo Ministério Público, bem como pelo assistente XXX.
Assim, a presente decisão singular, porque põe em causa o objecto do acórdão proferido pelo TRL, ultrapassando as competências que, na instância de recurso, se lhe encontravam ainda reservadas, em violação do caso julgado formal e do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, nos termos do disposto nos artigos 613º, nºs 1 e 3 e 620.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex-vi do artigo 4.º, do CPP, o que constitui nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º, al. e) do CPP, por violação das regras de competência e hierarquia.
O despacho em reclamação viola ainda o princípio da adesão, previsto no art.97º do CPP, afigurando-se que o mecanismo previsto no artigo 82.º, n.º 3, do CPP, está previsto para um momento processual em que o pedido cível ainda não foi conhecido, o que não sucede no caso dos presentes autos.
Com efeito, nos presentes autos, como se referiu, já foi proferida decisão de mérito sobre os pedidos de indemnização civil do Ministério Público, em representação do Estado, bem como do assistente XXX, sendo certo que a dedução de incidente de habilitação de herdeiros nos presentes autos, quanto ao Arguido e Demandado João Rendeiro, não se afigura como susceptível de configurar, por si, o invocado "atraso intolerável" dos mesmos, de molde a justificar o reenvio para os tribunais civis, ao abrigo do art.º 82.º, n.º 3 do CPP..
O TRL já julgou o pedido cível formulado pelo que, para nós, é líquido que o incidente de habilitação de herdeiros terá de prosseguir na instância penal (junto do tribunal superior, nos termos do disposto no artigo 357º, do CPC) e jamais poderá consubstanciar uma causa passível de inviabilizar ou retardar intoleravelmente º processo penal, pois que, no caso concreto, sempre será possível fazer uso do expediente a que se reporta o artigo 355.º do CPC, ex vi do disposto no artigo 4º, do CPP.
Por outro lado, o artigo 377º, nº 1, do CPP (sob a epígrafe "Decisão sobre o pedido de indemnização civil"), estabelece que "a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82º, nº 3", pelo que, fazendo a interpretação da norma, a contrario, resulta que, havendo já condenação nos autos, o mecanismo previsto no artigo 82.º, n.º 3, do CPP, nunca será de aplicar.
Mesmo diante da incerteza de herdeiros sucessíveis, será requerida a habilitação de herança jacente, a qual deverá ser decidida nos presentes autos, nos termos do disposto nos artigos 355º e 357º, ambos do Código de Processo Civil.
Tenha-se ainda em conta que, no que alude à matéria relativa aos pedidos cíveis, a prova já foi toda produzida, valorada, apreciada e julgada, não podendo a mesma ser repetida em processo civil separado, com os constrangimentos e prejuízos daí decorrentes, designadamente sem que se acautele a garantia patrimonial que os demandantes dispõem nos presentes autos.
Finalmente, tenha-se ainda em conta o teor dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12.02.2014, no processo nº 4811/12.6T3AMD.L1 - 3, e do STJ, nº 3/2002, de 17.01.2002, publicado no DR, I série-A, de 5.03.2020".
(…)
Assim, face ao supra exposto, deve o despacho reclamado ser declarado nulo, nos termos do disposto no artigo 119.º, al. e), do CPP, por violação das regras de competência e hierarquia e ilegal, por violação do princípio da adesão, previsto no artigo 719, do CPP, determinando- se a sua revogação e substituição por outro que, mantendo a suspensão da instância, determine que os autos prossigam os seus ulteriores termos, na sequência do falecimento do arguido JR, incluindo a instância civil, a qual deverá manter-se enxertada na penal.”
Por sua vez, os demandantes, referem:
“1. O despacho em referência veio determinar a cessação da suspensão da instância, em razão de ter sido julgado improcedente o incidente de habilitação de herdeiros que havia levado àquela suspensão, ali se decidindo, igualmente, remeter “as partes para os Tribunais civis para aí dirimirem as questões civis provenientes do pedido de indemnização civil”.
2. A razão de tal decisão radicará no entendimento de que, “no caso concreto, as questões suscitadas pelo pedido de indemnização, mormente a necessidade de habilitar herdeiros, geraram incidente que retarda intoleravelmente o processo penal pois que se mostra imperioso prosseguir os autos com a decisão dos recursos pendentes, os quais aguardavam a decisão do incidente”.
3. Salvo o devido respeito, o despacho ora em apreço está ferido de invalidade, não podendo subsistir na ordem jurídica, sob pena de causar danos irreparáveis ao aqui Reclamante.
Vejamos,
4. Em primeiro lugar, mostra-se o despacho reclamado ferido de ineficácia, senão mesmo inexistência processual, por violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional.
5. Como pode ler-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.04.2018, proc.º n.º 369/09.5TJCBR-A.C1, “o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que logo a seguir se arrependa, por adquirir a convicção que errou. Para ele a decisão fica sendo intangível. É esta a razão do princípio estabelecido no aludido art. 613º, nº 1, do NCPC. Há, na verdade, que assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional, sob pena de dando o juiz o dito por não dito se criar a desordem, a confusão e a incerteza”.
6. De igual modo, consignou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17.04.2012, proc.º n.º 116/11, o seguinte:
“Com o proferimento da decisão dá-se o imediato esgotamento – rectior, extinção – do poder jurisdicional do juiz (artº 666 nºs 1 e 3 do CPC). Dessa extinção decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada. Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem, assim, dois efeitos: um positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; um negativo – representado pela insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar.
Todavia, a intangibilidade, para o juiz, da decisão que proferiu, é, naturalmente, limitada pelo objecto dela: a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às questões sobre incidiu a decisão. Por isso nada obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida: o juiz pode - e deve - resolver todas as questões que não tenham com o objecto da decisão proferida uma relação de identidade ou ao menos de prejudicialidade, e, portanto, que não exerçam qualquer influência da decisão que emitiu, relativamente à qual o seu poder jurisdicional se extinguiu e se esgotou” (sublinhado nosso).
7. No caso vertente, a decisão singular ora reclamada não foi proferida pelo Exmo. Senhor Juiz-Desembargador Relator no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros, mas sim nos autos principais.
8. E, nos autos principais, foi já proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no qual se conheceu as matérias relativas à instância civil e se manteve
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