Acórdão nº 469/22.2GGSNT.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2024-01-09

Ano2024
Número Acordão469/22.2GGSNT.L1-5
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


1.–No processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, n.º Processo 469/22.2GGSNT a correr termos no Juízo Local Criminal de Sintra – Juiz 2 foi proferida sentença, na qual decide-se:
a)-Absolvo o arguido JP..., pela prática, como autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e nº 2, alínea a) do Código Penal.
b)-Declaro extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido, JP..., pela prática de um crime de dano, por falta de legitimidade do Ministério Público para promover os respectivos termos.
c)-Condeno o arguido JP... pela prática de três crimes de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, nº 1 do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão, por cada um de dois dos crimes e na pena de 5 meses de prisão por um dos crimes;
d)-Em cúmulo jurídico, condeno o arguido JP... na pena única de 8 meses de prisão”.
*

Inconformada, a assistente AA interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
a)- Vem o presente recurso, interposto da decisão constante de Decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Criminal de Sintra – Juiz 2, no processo n.º 469/22.2GGSNT, que absolveu o arguido JP... do crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 alínea a), n.º 2, alínea a), do Código Penal.
b)- O tribunal “a quo” julgou a acusação pública parcialmente procedente e, em consequência:
Absolvo o arguido JP..., pela prática, como autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e nº 2, alínea a) do Código Penal.
b)- Declaro extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido, JP..., pela prática de um crime de dano, por falta de legitimidade do Ministério Público para promover os respectivos termos.
c)-Condeno o arguido JP... pela prática de três crimes de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, nº 1 do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão, por cada um de dois dos crimes e na pena de 5 meses de prisão por um dos crimes;
d)-Em cúmulo jurídico, condeno o arguido JP... na pena única de 8 meses de prisão;
c)-Na verdade, e sempre com o devido respeito, não se pode conformar a assistente com a pena aplicada.
d)-Na sentença recorrida foram dados como provados praticamente todos os factos constantes da acusação que estiveram na base da imputação do crime de violência doméstica, com excepção dos factos não provados supramencionados.
e)-Para dar os factos supra descrito como não provado, o Tribunal “a quo” considerou que os demais factos dados como provados não consubstanciam a prática desse crime mas sim de crimes de ofensas à integridade física simples.
f)-Sobre o âmbito de protecção do crime de violência doméstica pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-02-2013: “A ratio deste artigo que estamos a analisar vai muito mais longe que os maus-tratos físicos, abrangendo também os maus tratos psíquicos, como as ameaças, as humilhações, as provocações, as curtas privações da liberdade de movimentos e as ofensas sexuais. Assim sendo, podemos dizer que o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, esta entendida enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.” (Acórdão proferido no processo n.º 2167/10.0 PAVNG.P1 disponível in www.dsgi.pt).
g)-A conduta tipificada no crime de violência doméstica é um “estado de agressão permanente” por parte do sujeito activo, sem que as agressões físicas ou psíquicas tenham que ser reiteradas ou constantes
h)-Não vemos como não considerar os factos dados como provados integradores deste tipo legal.
i)-O casamento do arguido e da assistente foi sempre pautado por violência, quer física, quer psicológica.
j)-Entende a Recorrente que errou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, nomeadamente ao suscitar a alteração da qualificação jurídica dos factos para um mero crime de ofensa à integridade física simples (143°, n°1 Código Penal).
k)-A lei n° 59/2007 de 4 de Setembro que procedeu à 23.ª alteração ao Código Penal veio aditar a este Diploma o art. 152° relativo à violência doméstica, prescindindo o mesmo tipo de ilícito criminal de qualquer reiteração dos maus tratos, bastando-se com uma única conduta para integrar a mesma no conceito de violência doméstica.
l)-Os factos dados como provados são suficientes para preencher a tipicidade do crime de violência doméstica
m)-Aliás, face à matéria provada e aquela que devia ter sido considerada como provada, porque sustentada em depoimentos valorados em sede de audiência de julgamento, entende a Recorrente que a decisão tinha de ser outra, nomeadamente a condenação do arguido pelo crime de que vinha acusado, nomeadamente pelo crime de violência doméstica.
n)-Assim, ao decidir como decidiu, o douto tribunal “a quo” violou, salvo o devido respeito, o disposto no art. 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a), do Código Penal.
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O arguido JP... apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
1.– O arguido foi acusado da prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal.
2.– Os factos imputados ao arguido e dados como provados não consubstanciam a prática do sobredito crime.
3.–A conduta típica do crime de violência doméstica não se esgota na verificação dos sujeitos do artigo 152.º do CP, e nos maus-tratos (físicos ou psíquicos) do agressor à vítima, os quais deverão estar associados a um tratamento degradante ou humilhante da vítima, capaz de eliminar a dignidade da pessoa.
4.–Nem tudo o que são maus-tratos numa concreta situação de relação interpessoal como a conjugal ou análoga, consubstancia um crime de violência doméstica; na análise da conduta há que considerar a relação existente entre o agressor e a vítima - uma relação de dependência e subjugação do agressor para com a vítima, na sua vida, na sua liberdade, honra, o que leva a vítima a uma situação de medo e subjugação.
5.–Dos factos provados em julgamento, não resultou, minimamente, que tenha ocorrido qualquer acto que revele atentado à dignidade humana da Recorrente, que, aliás, foi bem perentória no seu discurso, “absolutamente gráfico, claro e muito calmo”, que não tinha medo do arguido, demonstrando ao longo das suas declarações “com muita precisão e clareza” inexistir qualquer relação de dependência e de submissão.
Por conseguinte,
Copiando da sentença recorrida,
6.–Considerando a “(…) factualidade provada, é legítimo concluir que a verdade jurídica surge como um minus em relação à narração acusatória, não satisfazendo, minimamente, o tipo de violência doméstica por não revelar o especial desvalor de acção ou a particular danosidade do facto que sustentam a especificidade do crime de violência doméstica”.
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O Ministério Público apresentou resposta,formulando as seguintes conclusões:
1.-A sentença proferida nos autos, de que a assistente recorre, absolveu o arguido JP..., pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal, e condenou-o pela prática de três crimes de ofensa à integridade física simples, p. pelo art. 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena única de 8 meses de prisão.
2.-Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões apresentadas pela Recorrente, a questão por si suscitada prende-se com a discordância com o Tribunal a quo quanto à qualificação jurídica dos factos pelos quais o arguido foi condenado.
3.-De forma generalizada, e conforme entendimento do Tribunal a quo, têm sido apontadas como tuteladas pela proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica, a saúde e a dignidade da pessoa.
4.-Todavia, a jurisprudência mais recente tem entendido que para além daqueles bens jurídicos, o crime de violência doméstica tutela uma pluralidade de bens jurídicos que encontram protecção autónoma noutros tipos legais – tais como, nos crimes de maus tratos, de ofensa à integridade física, de ameaça, de coacção, de sequestro, de importunação sexual, de coacção sexual, de abuso sexual de menores dependentes e, ainda, nos crimes contra a honra.
5.-A jurisprudência tem decidido, igualmente, que a opção pelo tipo do art. 152.º em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente os bens jurídicos por aquele abrangidos exige a verificação de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime ser indissociável da relação familiar presente ou passada.
6.-A evolução doutrinária e jurisprudencial tem conduzido, assim, ao alargamento daquele que é bem jurídico protegido pela norma e, ainda, ao afastamento da necessidade da verificação de uma qualquer situação de dependência entre a vítima e o arguido, por tal elemento não resultar do tipo legal, diversamente da exigência de que os factos tenham lugar por causa da relação, o que resulta do tipo legal.
7.-Quando estas ações ou omissões não forem reiteradas, a doutrina e jurisprudência citadas entendem que o que ditará o seu enquadramento no art. 152.º, com o consequente afastamento dos tipos legais simples respetivos, será não apenas a gravidade intrínseca da conduta praticada, e bem assim, o resultado produzido, na perspetiva das consequências materiais para a saúde da vítima, mas também o juízo que, em concreto, se venha a fazer, sobre se aquela conduta se traduziu, ou não, na colocação em causa da pacífica convivência familiar
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