Acórdão n.º 360/2016

Data de publicação04 Janeiro 2017
SectionParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão n.º 360/2016

Processo n.º 563/2015

2.ª Secção

Relator: Cons.ª Ana Guerra Martins

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1 - Nos presentes autos vindos da 8.ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, em que são recorrentes Filipe de Jesus Pinhal, Jorge Manuel Jardim Gonçalves e António Manuel Seabra Melo Rodrigues e recorrido o Ministério Público, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), foram interpostos três recursos, respetivamente em 10 de março de 2015 (fls. 16 667 e 16 668), em 18 de março de 2015 (fls. 16 719 a 16 743), e em 20 de maio de 2015 (fls. 16 780 a 16783), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de fevereiro de 2015 (fls. 16 300 a 16 651), que decidiu julgar não providos todos os recursos.

Quanto ao primeiro e último recorrentes, o Tribunal proferiu, em 12 de novembro de 2015 (fls. 16825 a 16843), a Decisão Sumária n.º 710/2015 que foi por ambos objeto de reclamação que este Tribunal indeferiu através do Acórdão n.º 265/2016, de 4 de maio de 2016. Relativamente ao segundo recorrente, o Tribunal proferiu, também em 12 de novembro de 2016 (fls. 16813 a 16824), despacho no qual, por um lado, decidiu não conhecer de quatro das seis questões de constitucionalidade suscitadas por não se encontrarem verificados todos os pressupostos processuais exigidos pelo artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional e, por outro lado, mandou alegar quanto às restantes duas questões de constitucionalidade, tendo, no entanto, o recorrente sido alertado para a possibilidade de não conhecimento das mesmas, em virtude de o preenchimento dos requisitos da normatividade e da ratio decidendi se afigurar duvidoso.

2 - Notificado para o efeito, o recorrente produziu as suas alegações, em 17 de dezembro de 2015 (fls. 16946 a 16998), tendo concluído o seguinte:

"Conclusões:

1 - Os artºs 383.º a 386.º do CdVM, ao permitirem que a CMVM, obtido o conhecimento de factos que possam vir a ser qualificados como crime contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, possa instaurar e promover um processo de averiguações, para apurar a possível existência da notícia de um crime contra o mercado de valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de qualquer processo formalmente organizado, são inconstitucionais, por violação dos artºs 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, e 219.º, da CRP. Por maioria de razão,

2 - A norma extraída dos artºs 383.º a 386.º do CdVM e dos artºs 48.º e 262.º do CPP, interpretada no sentido de que, após instaurado processo de inquérito penal, a CMVM pode, por sua própria iniciativa, promover averiguações para apurar a possível existência da notícia de um crime pertencente ao âmbito temático do inquérito em curso, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de qualquer processo formalmente organizado, é, em tal interpretação, inconstitucional, por violação dos artºs 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, e 219.º, da CRP.

3 - Pelos motivos invocados, a interpretação apontada também viola o artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP, e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

4 - Com efeito, trata-se de uma interpretação que briga com o Estatuto do Ministério Público, fundado na defesa imparcial da legalidade democrática e dos direitos à privacidade dos cidadãos.

5 - A permissão de existência de "pré-inquéritos" ou de "para-inquéritos", tramitados à revelia de qualquer processo formalmente organizado, e com aplicação dos princípios e regras de direito processual penal, durante um período indeterminado de tempo, viola o direito ao processo equitativo e as garantias de defesa dos cidadãos em matéria sancionatória. A possibilidade de utilização dos elementos probatórios assim recolhidos, no quadro de um processo penal, briga, frontalmente, com o artigo 32.º, n.º 8, da CRP.

6 - A norma extraída dos artºs 116.º e 120.º do RGICSF, artigo 361.º do CdVM, artºs 41.º e 54.º do RGCO, e artºs 126.º e 261.º do CPP, interpretada no sentido de que, após notícia do ilícito e fora do quadro de um processo sancionatório formalmente organizado, os Reguladores podem intimar os supervisionados visados a fornecer documentação, sob cominação de sanção por incumprimento do dever de colaboração, podendo essa documentação assim obtida ser utilizada como prova contra o visado/Arguido e/ou outros, em processos sancionatórios futuros, é, em tal interpretação, inconstitucional, por violação dos artºs 2.º, 3.º, 13.º, 16.º, 18.º, 20.º, n.º 4, 29.º, 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, da CRP.

7 - Pelos motivos invocados, a interpretação apontada viola também o artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP, e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

8 - Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Jurisprudência do TEDH, o seguinte:

"A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos direitos do Homem fornece, hoje, um lastro jurisprudencial de interconstitucionalidade em sede de direitos fundamentais que, progressivamente, se vai incorporando na densificação normativa e decisória jurisprudencial dos programas constitucionais e das normas e princípios consagradores dos direitos fundamentais [...]."

9 - Trata-se, assim, de uma norma que viola frontalmente o artigo 6.º da CEDH, aplicável ex vi artigo 16.º da CRP, tal como tem vindo a ser densificado pela jurisprudência do TEDH, de onde decorre a proibição de uso de meios coercivos para obtenção de informação suscetível de incriminar a pessoa do visado em processo sancionatório pendente ou antecipável [...].

10 - Tal norma viola, igualmente, os artºs 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, 29.º, 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10 da CRP, porquanto briga com (i) a ideia de Estado Direito Democrático, cuja atividade se subordina à Constituição e à lei, (ii) o princípio da presunção de inocência, (iii) a tutela jurisdicional efetiva, (iv) o processo equitativo, (v) as garantias de defesa, (vi) o princípio do acusatório, do contraditório, da lealdade e legalidade processuais, (vii) e o princípio da proibição de não autoinculpação em processo sancionatório.

11 - Trata-se, também, de uma interpretação que viola o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, por pressupor e implicar um tratamento desigual, injustificado e desnecessário, dos Arguidos, em matéria de mercado dos valores mobiliários e sistema financeiro, sem paralelo noutros processos de natureza sancionatória.

12 - Por fim, é uma interpretação que viola o artigo 18.º, n.os 1 e 2, da CRP, uma vez que atenta contra o núcleo essencial do processo leal e equitativo e da proibição de não autoincriminação, em favor do Regular funcionamento dos Mercados e do Sistema Financeiro, e fá-lo sem que estes últimos sejam alvo de qualquer compressão, violando o princípio da concordância prática. Esta disposição mostra-se também corrompida, atenta a desnecessidade de recurso aos ditos meios para instruir, investigar e decidir processos contraordenacionais e penais.

13 - Declarando as inconstitucionalidades indicadas nas precedentes conclusões 2 e 6, farão Vossas Excelências"

3 - Notificado para o efeito, em 2 de fevereiro de 2016 (fls. 17005 a 17024), veio o Ministério Público apresentar as suas contra-alegações, de onde se retiram as seguintes conclusões:

"3. CONCLUSÃO

Primeira questão de constitucionalidade

1 - A interpretação dos artigos 383.º a 386.º do CVM, no sentido de permitir que, obtido o conhecimento de factos suscetíveis de ser qualificados como crimes contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, a CMVM possa instaurar e promover um processo de averiguações para apurar a possível existência, da notícia de um crime, sem a fixação expressa de um limite temporal, não viola qualquer das normas constitucionais indicadas pelo recorrente, maxime os artigo 32.º, nºs 1 e 5 e 219.º da Constituição, não sendo, por isso inconstitucional.

Segunda questão de inconstitucionalidade.

2 - Porque a interpretação questionada não foi aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, não deverá conhecer-se, nesta parte, do objeto do recurso.

3 - A possibilidade de serem usados como prova em processo criminal os documentos que a CMVM e o Banco de Portugal obtiverem no exercício das suas funções de supervisão ao abrigo dos deveres de cooperação, cujo incumprimento é sancionável (artigos 358.º, 360.º, 361.º e 381.º do CVM e 116.º e 120.º do RGICFS), não viola nenhuma das normas constitucionais que o recorrente refere, não se verificando, consequentemente, qualquer inconstitucionalidade.

4 - Pelo exposto, a conhecer de mérito quanto às duas questões, deve ser negado provimento ao recurso."

Posto isto, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

A) Delimitação das questões a apreciar

4 - Nos autos ora em apreciação discute-se a constitucionalidade de duas interpretações normativas (e apenas duas), a saber:

(i) a questão da alegada interpretação normativa retirada dos artigos 383.º a 386.º do Código dos Valores Mobiliários («CVM»), com o sentido de permitir "que, obtido o conhecimento de factos suscetíveis de ser qualificados como crimes contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, a CMVM possa instaurar e promover um processo de averiguações para apurar a possível existência, da notícia de um crime, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de um processo formalmente organizado, (.)...

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