Acórdão nº 351/20.8GAPRD.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2023-01-18

Data de Julgamento18 Janeiro 2023
Ano2023
Número Acordão351/20.8GAPRD.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. n.º 351/20.8GAPRD.P1

Sumário:
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Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
Nos presentes autos de Processo Comum Singular n.º 351/20.8GAPRD, do Juízo Local Criminal de Paredes – Juiz 2, foi proferido despacho, em 07-09-2022, pelo qual se decidiu rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público, com imputação ao arguido AA de um crime de violência doméstica, por ser considerada manifestamente infundada, dado os factos aí descritos não preencherem os elementos típicos daquele crime (ref.ª 89647789).
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O Ministério Público interpôs recurso dessa decisão, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
I - O presente recurso versa a questão de saber se a acusação deduzida é, ou não, manifestamente infundada e impugna o douto despacho jurisdicional que decidiu rejeitar a acusação por a factualidade não constituir crime, com a invocação da carência da narração dos factos integrantes do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), do C.P., sustentando-se no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do CPP.
II - Na verdade, a actividade de saneamento do processo e as faculdades concedidas ao juiz no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, são consagrações do princípio do acusatório, com vista a evitar a submissão do arguido a julgamento quando manifestamente os factos descritos na acusação não integrem a prática de facto tipificado por lei como crime.
III - Tal análise deve resultar do simples exame da factualidade descrita e exposta na acusação, sem necessidade de recorrer a outros elementos já constantes do processo, anteriores ou posteriores à dedução da acusação, pois se a inexistência de crime não resultar inequivocamente da análise do teor da acusação só na sentença, após a realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz pode decidir da existência ou não de um crime, uma vez que a questão tem natureza substantiva.
IV - A rejeição de acusação ao abrigo da alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, tem como pressuposto que da simples leitura dos factos nela descritos se possa concluir que não constituam crime.
V – A acusação pública em causa nos presentes autos possui todos os elementos objectivos do crime, designadamente que, desde 2016, após ser libertado do cumprimento de prisão, o arguido passou a viver com a mãe, actualmente com 87 anos de idade, a quem diariamente ofendia, dizendo que era “uma puta, uma vaca, uma badalhoca, que fosse mamar piça”, a quem exigia dinheiro diariamente, intimidando-a, com expressões como “boto lume à casa”.
VI - A rejeição com base nos fundamentos aduzidos realizou um verdadeiro julgamento de mérito, quando não foi essa a amplitude que o legislador quis dar ao artigo 311.º do Código de Processo Penal.
VII - Desta forma, o douto despacho recorrido deverá ser mandado revogar e substituir por outro que considere a acusação pública foi deduzida nos correctos termos impostos pelo artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a receba e mande dar cumprimento ao disposto no artigo 311.º-A do CPP.
V. Ex.as, como sempre, farão JUSTIÇA!” (ref.ª 8253772).[1]
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Tal recurso foi regularmente admitido por despacho de 14-10-2022, notificado aos sujeitos processuais, não tendo sido apresentada resposta, designadamente por parte do arguido AA (ref.ª 90035925).
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Recebidos os autos neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nele enunciando o que está em causa nos autos e transcrevendo as conclusões apresentadas pelo recorrente, concluindo que o recurso se encontra sustentado de facto e de direito, merecendo a apreciação deste Tribunal, pelo que apõe o competente visto (ref.ª 16423266).
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Foi proferido despacho liminar e depois colhidos os vistos, com decisão em conferência.
II
As conclusões enunciadas, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).
Não havendo outras de conhecimento oficioso, cumpre atentar nas questões colocadas pelo recorrente à apreciação deste Tribunal, sendo que, para melhor percepção e análise das mesmas, importa ter presente a acusação deduzida nos autos, a qual é do seguinte teor (no que agora releva):
O Ministério Público acusa, para julgamento em processo comum e perante o Tribunal Singular:
AA, natural de ..., nascido a .../.../1970, solteiro, filho de BB e de CC, titular do C. C. n.º ... e residente na Rua ..., ..., ..., Paredes,
Porquanto há indícios suficientes de ter praticado os seguintes factos:
1. O arguido AA, nascido em .../.../1970, após ter cumprido uma pena de prisão efetiva e não ter outro lugar para residir, desde 2016, passou a coabitar com a ofendida CC, sua mãe, em habitação situada na Rua ..., ..., 1.º andar, ..., Paredes.
2. A ofendida CC, nascida a .../.../1935, à data dos factos que infra se vão descrever, contava já com 85 anos.
3. O arguido não tem quaisquer fontes de rendimentos para fazer face ao seu vício de consumo de álcool, pelo que, desde aquela data, que o arguido exigiu ser sustentado pela ofendida, sendo que a ofendida apenas aufere cerca de €400,00, com o qual tem que fazer face a todas as despesas.
4. Nas alturas em que o arguido fica descompensado, torna-se agressivo, capaz de gerar comportamentos imprevisíveis, agredindo verbalmente a ofendida.
5. Ameaçando que qualquer dia bota lume à casa.
6. Sendo usual, no domicílio comum, o arguido adoptar uma postura intimidatória, fazendo peito à ofendida, quando esta o decide contrariar ou chamar à atenção, face à sua diminuída condição física.
7. Apelidando-a de puta, vaca, badalhoca, dizendo-lhe para ir mamar na piça.
8. Com recurso à intimidação e violência psicológica, o arguido, diariamente, no interior do domicílio comum, exige à ofendida que esta lhe entregue dinheiro para fazer face ao seu vício e se a mesma recusa a lhe dar dinheiro, nessas alturas, o arguido torna-se violento, partindo objetos que se encontram no interior da habitação, diminuindo a sua capacidade de defesa.
9. Ademais, nas alturas em que o arguido se encontra notoriamente embriagado, o arguido impede a ofendida de descansar, já que permanece no quarto da ofendida a falar alto e a fazer barulho.
10. Pelos factos que se tem vindo a descrever, foram mesmo os autos suspensos provisoriamente, por despacho datado de 04.12.2020, pelo período de 24 meses.
11. Acontece que o arguido, desbaratando esta oportunidade, nunca deixou de adotar comportamentos agressivos contra a sua progenitora, motivado por um consumo regular de álcool.
12. Continuando a exigir, diariamente, à sua progenitora, que esta lhe entregue quantias monetárias para aquisição de álcool, fazendo crer à ofendida que se esta recusar, que a vai agredir, através de uma postura intimidatória, pelo que a mesma acede, entregando-lhe diariamente quantias de valor não concretamente apurado.
13. Quando a ofendida recusa, o arguido apelida-a de puta.
14. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente com o propósito, concretizado, de molestar física e psicologicamente a ofendida, sua mãe, destratando-a na sua honra, consideração e dignidade pessoal, tendo-a submetido a um tratamento desrespeitoso, e colocando-a numa situação de dependência física e emocional, não obstante bem saber que por ser seu filho, impendia sobre si um dever especial de respeito para com aquela.
15. Mais sabia que as expressões que dirigia à ofendida, no tom, e circunstâncias em que foram proferidas eram adequadas a causar temor, receio e intranquilidade na ofendida, e que dessa forma, causava na mesma perturbação na sua livre decisão e determinação e decisão.
16. O arguido atuou de forma reiterada e direcionou a sua vontade para aqueles propósitos que quis e conseguiu, não se coibindo de adotar aqueles comportamentos no interior da residência da ofendida.
17. Mais abusando da sua ascendência física e psicológica face à ofendida, aproveitando-se da incapacidade da sua progenitora de se defender e da sua fragilidade, pessoa particularmente indefesa, que, face ao que se tem vindo a expor, se encontra numa situação de especial fragilidade, bem sabendo que dessa forma diminuía a capacidade de resistência e de defesa da ofendida às agressões de que foi alvo.
18. Aliás, ao privar a ofendida, sua progenitora, do seu descanso, na sua casa, que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, sabia o arguido que atentava contra a dignidade humana daquela, causando-lhe sofrimento psíquico, o que quis e conseguiu.
19. Tudo com o objetivo de manter a ofendida sob domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acabou por viver submergida pela ansiedade e pelo medo.
20. Com este tipo de comportamentos, o arguido mantinha a sua mãe, ofendida, sempre com medo daquilo que o mesmo pudesse fazer contra si e/ou contra os seus bens.
21. Tinha perfeita noção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, não obstante não se coibiu de atuar nos termos supra descritos.
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Com a factualidade descrita, o arguido incorreu, deste modo, em autoria material, na prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do C. P. e na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica,
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