Sentença ou Acórdão nº 0000 de Tribunal da Relação, 01 de Janeiro de 2024 (caso Acórdão nº 3471/22.0YRLSB-6 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2024-01-11)

Data da Resolução01 de Janeiro de 2024
Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
A…, natural da freguesia do Campo Grande, concelho de Lisboa, casado, portador do cartão de cidadão número (…), emitido pela República Portuguesa, residente (…) Brasil, veio intentar a presente acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos do art.º 978º e ss. do Código de Processo Civil, contra AC…, casada, natural de Fortaleza, Estado do Ceará, Brasil, portadora do cartão de cidadão número …, emitido pela República Portuguesa, residente na Rua (…) Portugal, requerendo a revisão e confirmação da sentença proferida em … 2022 pela 1.ª Vara de Sucessões, Comarca de Fortaleza, Estado do Ceará, República Federativa do Brasil, no processo … e apensos …, sentença transitada em julgado em … 2022, na qual foram indeferidas as pretensões que a aqui requerida e ali autora havia formulado, a saber o pedido de reconhecimento da qualidade de herdeira de AF…, de nulidade de partilha feita e homologada nos autos do processo n.º … (inventário) do mesmo Juízo brasileiro que proferiu a decisão cuja revisão se requer, partilha essa relativa a bens deixados no Brasil pelo falecido AF.
Alegou em síntese o Requerente que é filho de AF e de sua cônjuge MT, tendo o pai falecido em 23-12-1982 e tendo deixado bens no Brasil e em Portugal. Deixou como herdeiros a cônjuge e os filhos.
A Requerida intentou na República Federativa do Brasil, “... Ação de Petição de Herança c/c pedido de nulidade de partilha c/c pedido de medida cautelar de sequestro de bens em caráter liminar c/c pedido de indenização por perdas e danos materiais” contra o Autor, sua mãe e seus irmãos, MN e MTS.
Entre o mais, nessa acção a aqui R. peticionou a herança do falecido AF, pediu o reconhecimento da qualidade de herdeira do mesmo e a nulidade de partilha feita e homologada nos autos do processo n.º … (inventário) partilha essa que era relativa a bens deixados no Brasil pelo falecido.
Nessa acção foi proferida sentença em ...2022, que indeferiu todas as pretensões da ali Autora e aqui Requerida.
Concluindo pela verificação de todos os pressupostos para a revisão e confirmação da sentença em Portugal, alegou o Requerente:
12.º É necessário que a sentença do Poder Judiciário do estado do Ceará, Comarca de Fortaleza, 1.ª Vara de Sucessões, tenha eficácia em Portugal porquanto define direitos que importa fazer valer e reconhecer em Portugal”.
Juntou a sua certidão de nascimento e certidão da sentença revidenda.
*
Citada, AC deduziu oposição, que concluiu com o seguinte petitório:
a) a improcedência da presente acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira proferida pelo Poder Judiciário do Estado do Ceará, Brasil, e
b) o indeferimento da sua revisão e confirmação evitando-se só assim a restrição dos direitos fundamentais da Requerida, cidadã portuguesa, bem como evitando-se assim a produção em Portugal de uma sentença com efeitos contrários ao ordenamento jurídico e aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, nos termos do artigo 980º e ss do C.P.C.
c) a condenação do Requerente como litigante de má fé, na medida em visa intencionalmente obter a produção de efeitos ilegais e contrários à Constituição da República Portuguesa, com intenção deliberada de prejudicar a irmã biológica;”.
E invocou a Requerida:
- é filha biológica de AF, de nacionalidade portuguesa, natural de Fortaleza, no Brasil, com residência em Portugal há mais de trinta anos.
- a mãe e o pai da Requerida são ambos portugueses e conheceram-se em Portugal, tendo decidido ir viver para o Brasil, onde mantiveram um relacionamento amoroso durante alguns anos, até este adoecer e regressar a Portugal onde veio a falecer.
- a Requerida é a filha mais nova, tendo nascido fora do casamento do seu pai.
- à época do nascimento da Requerida – em 1979 – a adopção era a única forma (em vigor no ordenamento jurídico brasileiro) de reconhecimento possível dos filhos nascidos fora da constância do casamento, dado o impedimento decorrente do vínculo conjugal com a mãe do Requerente, cônjuge do pai da Requerida, a qual não aceitou o nascimento extraconjugal.
- nesse contexto jurídico, em 1980, foi efectuada a adopção da Requerida pelo seu progenitor biológico.
- em 23.12.1982, o progenitor do Requerente e da Requerida faleceu, com última residência habitual em Portugal, conforme assento de óbito.
- os três irmãos da Requerida, nascidos na constância do casamento do pai, nunca aceitaram o relacionamento amoroso com a mãe da Requerida e o seu nascimento, suscitando há longos anos inúmeros obstáculos aos seus direitos.
- como se evidencia pela presente acção.
- não obstante todo o percurso jurídico dos últimos anos, os irmãos continuam a não aceitar o seu reconhecimento como filha biológica do pai de ambos e insistem em querer negar o seu reconhecimento como herdeira.
- como se comprova da presente acção que mais não é do que litigância de má fé, uma vez que a confirmação da filiação biológica tornou incontroversa a relação de paternidade biológica entre o progenitor do Requerente e da Requerida (cfr. Doc.1).
- facto esse (filiação biológica) que deveria ser suficiente para pôr termo às pretensões discriminatórias do Requerente e restantes irmãos.
- (…) desde há longos anos, a Requerida tem vindo a ser obrigada a grandes esforços e sacrifícios pessoais para se defender em território além mar, noutro país longínquo, de intenções discriminatórias de filhos nascidos fora do casamento e, com isso, salvaguardar a sua dignidade e a sua identidade pessoal.
(…)
B) DO DIREITO
I- Da incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português
- (…) em Portugal não poderá ser ignorada a filiação biológica pai-filha.
- motivo pelo qual a confirmação de uma sentença que ignora e nega a filiação biológica, identidade e os direitos sucessórios de uma cidadã portuguesa, viola os princípios da ordem pública internacional do Estado Português e a Constituição da República Portuguesa.
(…)
- nos termos do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
- a Requerida é filha de pais portugueses, vive há mais de trinta anos em Portugal, é cidadã Portuguesa e tem a protecção do Estado Português.
- o legislador Português é contrário ao pensamento subjacente à decisão do Poder Judiciário do Ceará que se pretende confirmar e produzir efeitos (…) e consagrou no n.º 2 do artigo 1797º do Código Civil que o estabelecimento da filiação tem, todavia, eficácia retroactiva.
- a Doutrina portuguesa, também, fomenta um espírito inclusivo dos filhos nascidos fora do casamento e anti-discriminatório.
- a Doutrina portuguesa tem entendido e defendido que a retroactividade dos efeitos da filiação é aplicável ao chamamento do filho à herança do seu pai.
- (…) refira-se o Senhor Professor Doutor Guilherme de Oliveira “O chamamento do filho a heranças que foram abertas antes do estabelecimento da filiação é outro exemplo da eficácia retroativa” (…) (cfr. Lex Familiae Ano 15, N.29-30 (2018)).
- e cita “Antunes Varela, “Anotação ao ac. Do stj de 25 de Março de 1982”, RLJ 118, 339-345, e ano 119, 22-28; zaccaria, Commentario breve al Diritto della Famiglia, 2.ª ed., Padova: cedam, 2011, 277; François terré / Dominique FenouiLLet, Droit civil, La Famille, 446; Giovanni Basini, Il diritto di famiglia, iii: Filiazione e adozione, Torino: utet, 1997, 169, nota 158.”
- o Senhor Professor Doutor Guilherme de Oliveira refere, ainda, o seguinte “Supondo que o estabelecimento da filiação é posterior ao termo do inventário — o que determina que o herdeiro não adquiriu esta qualidade a tempo de participar na divisão hereditária — haverá lugar à composição da quota do herdeiro que não interveio. Neste exemplo, a lei não pretende ficcionar que o filho agora reconhecido já existia antes como filho jurídico; mas faz produzir agora os efeitos que se teriam produzido se o reconhecimento se tivesse verificado antes” (…).
(…)
- uma eventual confirmação da referida sentença estrangeira irá, também, permitir que uma decisão com carácter discriminatório quanto a filhos nascidos na constância do casamento e filhos nascidos fora do casamento, produza efeitos no ordenamento jurídico português.
(…)
A isso acresce que o óbito ocorreu em Portugal, local onde o falecido se encontrava a residir, todos os herdeiros são cidadãos portugueses.
- pelo que, salvo melhor opinião, deverá ser aplicável o artigo 72º-A sendo em matéria sucessória competente o tribunal do lugar da abertura da sucessão, o qual foi em Lisboa.[1]
- o falecido tinha nacionalidade portuguesa, faleceu em Portugal e todos os herdeiros têm nacionalidade portuguesa.
- motivo pelo qual a Requerida se questiona sobre qual o fundamento para que uma sentença de um ordenamento jurídico estrangeiro venha produzir efeitos em Portugal e negar-lhe os direitos que o ordenamento jurídico português considera fundamentais e lhe concede tutela jurídica Constitucional?
- refira-se o disposto no n.2 do artigo 983º do C.P.C.
- atento o acima exposto, a Requerente entende que o reconhecimento da decisão judicial brasileira, ora em análise, conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
- todas as diligências adoptadas pela Requerente, têm sido em reacção a actos e condutas praticadas pelos irmãos e que visam prejudicar a sua identidade pessoal, honra e património.
- os bens sitos em Portugal ainda não foram partilhados e que está a correr os seus termos um processo de inventário no Tribunal da Comarca de Lisboa.
(…)
- o Requerente visa obter a produção de efeitos em Portugal que são totalmente incompatíveis com os direitos que o Estado Soberano de Portugal concedeu à Requerida enquanto
...

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