Acórdão nº 323/21.5GBFLG-D.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-10-19

Ano2022
Número Acordão323/21.5GBFLG-D.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. n.º 323/21.5GBFLG-D.P1


ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – RELATÓRIO:
No âmbito do processo de inquérito do qual foi extraída a certidão que integra os presentes autos, por decisão proferida em 2.06.2022, após a realização de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foram aplicadas à arguida AA as seguintes medidas de coação:
a) Termo de identidade e residência (TIR), já prestado nos autos, decorrente do disposto do artigo 196.º do CPP;
b) Proibição de permanecer ou de frequentar, sem autorização do Tribunal, a habitação do ofendido (ex-marido), por força do artigo 200.º, n.º 1, al. a), do CPP, e artigo 31.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro;
c) Proibição de contactar, por qualquer meio, com o ofendido (ex-marido) nestes autos (onde se inclui contacto físico, telefónico ou por qualquer forma digital, informática ou tecnológica), por força do disposto no artigo 200.º, n.º 1, al. d), do CPP, e artigo 31.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
O Tribunal a quo entendeu não aplicar à arguida aos meios técnicos de controlo geoposicional, por considerar que as medidas de coação em causa, associado à advertência do artigo 203.º do CPP serão suficiente advertência para que interiorize a necessidade de cumprir as medidas de coação, para além de considerar que, no caso concreto, o uso de meios técnicos limitariam/inibiriam a mesma de usar algum tipo de vestuário, o que não se justifica na situação concreta.
*
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso, rematando a respetiva motivação com as seguintes conclusões [transcrição]:
1.O presente recurso limita-se à discordância quanto à não aplicação de meios técnicos de controlo à distância da medida de coação de proibição de contactos por qualquer meio com o ofendido (ex-marido) e de permanecer ou de frequentar sem autorização do Tribunal a habitação do ofendido (ex-marido) e dele se aproximar, que foram aplicadas à arguida em sede de interrogatório judicial.
2. Em face dos factos indiciados nos autos e que estão descritos na decisão de que se recorre, em conjugação com os elementos de prova indicados aquando da apresentação da arguida a primeiro interrogatório judicial e das declarações da arguida nessa sede, na nossa modesta opinião, deveria o tribunal a quo ter concluído, por um lado, pela impossibilidade de se efectuar um juízo de prognose favorável quanto ao cumprimento pela arguida, de forma voluntária, das medidas de coacção a que está sujeita e por outro lado, pela imprescindibilidade para a vítima da referida medida de controlo à distância, determinando-o.
3. Assim, entendemos que a decisão que aplicou a medida de coação à arguida proferida pelo Tribunal a quo incorreu em erro ao não determinar o controlo à distância da medida de coação aplicada, violando dessa forma as disposições conjugadas dos artigos 31°, n° 1 e 35, n° 1, 36, n° 1 da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro, e artigos 191° a 194.°, 196°, 200°, n.° 1 alíneas a) e d), e 204° alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal.
4. Da leitura conjugada dos referidos normativos resulta que o recurso a tal forma de controlo exige que seja efectuada uma ponderação sobre a necessidade, adequação e proporcionalidade de tal controlo pelo julgador, atendendo- se à gravidade e censurabilidade da conduta da arguida e ainda a um juízo de prognose desfavorável quanto ao cumprimento da medida de coacção aplicada à arguida, nomeadamente, pela probabilidade (elevada) de que a mesma contactará a vítima, estando, assim, esta mais vulnerável e exposta a que a mesma volte a adoptar contra ela comportamentos idênticos aos que estão em causa nos presentes autos, sendo imprescindível tal aplicação para protecção da vítima.
5. Exige-se, ainda, o consentimento do arguido, e eventualmente, até o da vítima, e de todos aqueles que possam ser afectados com a determinação de tal controlo - artigo 36° da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro.
6. Contudo, prevê ainda a lei que o consentimento da arguida possa ser suprido se o tribunal em decisão fundamentada, concluir que, na situação concreta e perante a ponderação dos valores e direitos em conflito, a aplicação de meios técnicos de controlo à distância constitui uma medida indispensável para a protecção dos direitos da vítima - neste sentido entre outros cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/09/2015 (processo n.° 572/14.20GBCL.G1, in www.dgsi.pt).
7. Ora, o Tribunal recorrido, procurando fundamentar a aplicação das medidas de coação aplicadas à arguida afirmou verificar-se perigo de perturbação de inquérito e perigo de continuação da actividade criminosa e de alarme social.
8. Fundou tais perigos nas quezílias e pressões constantes da arguida sobre o ofendido e da sua actual companheira e até sobre os próprios filhos, e no facto de a arguida mesmo sabendo da pendência dos presentes autos não se ter inibido de agredir física e verbalmente, em diversas ocasiões, o arguido durante a noite e até em público.
9. Ora, a ser assim, mal se compreende não se ter determinado o cumprimento dessa medida de coacção com recurso a meios de controlo à distância.
10. A aplicação dos meios de controlo à distância não colidem com o principio da presunção de inocência "tendo apenas a finalidade de assegurar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu regular andamento, quer no que concerne à execução das decisões no âmbito do mesmo proferidas. Tem ainda uma função cautelar, de prevenção de prosseguimento da actividade criminosa" - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/11/2020 (processo n.° 219/20.8SXLSB-A.L1-3, in www.dgsi.pt1.
11. Justifica o Tribunal a quo tal decisão no facto de entender "que na situação concreta a colocação de meios de vigilância eletrónica numa mulher tem de facto efeitos muito mais gravosos do que num homem e por uma razão muito simples por tendência as mulheres agora na época de verão usam saias e obviamente ia ter um aparelho que que ia estar sempre visível enquanto que um homem por tendência usa calças e tem o meio técnico tapado e ninguém se apercebe e numa mulher efetivamente ia causar algum transtorno E em alguns aspectos pode dizer até alguma humilhação pública ".
12. Resulta do artigo 5o da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro que "toda a vítima, independentemente da ascendência, nacionalidade, condição social, sexo, etnia, língua, idade, religião, deficiência, convicções políticas ou ideológicas, orientação sexual, cultura e nível educacional goza dos direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, sendo-lhe assegurada a igualdade de oportunidades para viver sem violência e preservar a sua saúde física e mental", expressando-se assim e desta forma o princípio da igualdade que encontra o seu fundamento no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa.
13. Entendemos que não poderá haver lugar neste campo a qualquer tipo de discriminação, seja ela positiva ou negativa, de outra forma estar-se-iam a perpetuar os velhos ensinamentos acerca de igualdade de género que tanto contribuem para a disseminação da violência doméstica, enquanto violência de género, alicerçada nos papéis tradicionais do que significa ser-se homem ou mulher em sociedade.
14. Entendimentos como os expressos na douta decisão de que se recorre e que supra se transcreveram apenas contribuem para perpetuar os estereótipos de género que se pretendem combater.
15. Os únicos fundamentos válidos neste âmbito estão expressos no artigo 35° da Lei 112/2009 de 16 de Setembro onde se estabelece que "o tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas (...) no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância ".
16. Sendo que toda a vítima tem o direito de lhe ser reconhecida igualdade de oportunidades para viver sem violência e preservar a sua saúde física e mental, não se aceitando quaisquer tipo de discriminações.
17. Dos elementos juntos aos autos e do que resultou do interrogatório judicial da arguida entendemos ser evidente que a arguida tem vindo a agravar a sua conduta e que tem uma obsessão pelo ofendido BB não lhe permitindo viver a sua vida em paz, acusando-o de ter amantes e apelidando a actual namorada do ofendido de amante (perguntando-lhe porque tem um relacionamento com o seu marido em Maio de 2022).
18. É evidente que a arguida ainda não aceitou o divórcio e que pretende reatar com o ofendido o relacionamento que mantiveram por mais de 25 anos, vivendo inconformada com o divórcio.
19. A arguida tem como principal fito intimidar não apenas o ofendido, que vive condicionado e restringido, temendo encontrar novamente aquela mesmo que em locais públicos, mas também a actual namorada do mesmo, tudo porque não aceita o fim do seu casamento (há mais de seis meses) e o refazer da sua vida pelo ofendido.
20. A arguida age indiferente às consequências de que podem advir para si do seu comportamento para com o ofendido agindo em locais públicos e vigiados por câmaras de vigilância electrónica.
21. Em sede de interrogatório judicial a arguida não assumiu o desvalor do seu comportamento para com o ofendido, antes o considerado justificado em face do que considera ser uma traição, nem mostrou qualquer arrependimento imputando a responsabilidade do seu comportamento ao ofendido.
22. Entendemos não ser possível efectuar qualquer juízo de prognose favorável de que no futuro irá cumprir as medidas de coação aplicadas sem vigilância eletrónica, tanto mais que mesmo sabendo da pendência dos presentes autos a arguida não se inibiu de procurar, confrontar e agredir física e verbalmente o ofendido em diversas ocasiões culminando a última em 24/05/2022.
23. O
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