Acórdão nº 3147/21.6T8STB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 2023-09-28

Ano2023
Número Acordão3147/21.6T8STB.E1
ÓrgãoTribunal da Relação de Évora

Processo n.º 3147/21.6T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal[1]
*****
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - RELATÓRIO
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, BB, CC, DD, e EE, pedindo:
A) Que seja declarado nulo o ato de divisão e fracionamento, bem como a posterior doação do imóvel identificado como verba dois, a favor do Réu EE, consubstanciado na escritura pública de divisão e doação de 14.06.2018, lavrada no Cartório Notarial ..., de FF, exarada a fls. vinte e oito a trinta e duas, do Livro de Escrituras diversas, número 67-A;
B) Que seja declarada nula a constituição da verba dois, identificada na escritura pública de divisão e doação de 14.06.2018, lavrada no Cartório Notarial ..., de FF, exarada a fls. vinte e oito a trinta e duas, do Livro de Escrituras diversas, número 67-A, como prédio urbano;
C) Seja ordenado o cancelamento dos registos dos prédios das parcelas resultantes da divisão e doação, assim como das inscrições matriciais, conforme referido em A) e B).
Em fundamento da deduzida pretensão, o Ministério Público alegou, em síntese, que os Réus realizaram uma escritura de divisão, partilha e doação de um prédio, em violação da unidade mínima de cultura; e ainda que um dos prédios que resultou da divisão está encravado.

2. Regularmente citados, os Réus CC, DD e EE apresentaram contestação, defendendo a validade da escritura de divisão e doação, invocando que a escritura em causa veio formalizar uma situação que já existia, pelo menos, há mais de 20 anos (o Réu EE invocou que existia há mais de 38 anos), e «no que se refere ao prédio encravado a situação não corresponde à verdade em virtude de existir um caminho de acesso a esse mesmo prédio de acordo com todos os Co-Réus».

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, o Tribunal decide julgar a presente ação improcedente, e, em consequência, decide absolver os Réus de todos os pedidos contra si formulados.
Isento de custas – art.º 4 n.º 1 alínea a) RCP».

4. Inconformado, o Autor apelou, finalizando a sua minuta recursória com as seguintes conclusões:
«1- Pese embora os fatos dados como provados e as conclusões a que chegou o Mº Juiz, acabou por delas fazer “tábua rasa” e construir uma decisão em que os mesmos não foram considerados ou atendidos;
2- Desde logo, no que se refere à caracterização do prédio que após a divisão deixou de possuir acesso a caminho público e ainda que tenha concluído que o Réu não tem acesso a caminho público, decidiu no sentido de que tal prédio não ficou encravado, pois embora não disponha do acesso a um caminho público, dispõe do acesso a um caminho privado que permite aceder à via pública. Com esta construção não pode deixar-se de concluir que tal decisão se encontra viciada de erro na interpretação dos factos e da sua subsunção às normas legais aplicáveis;
3- De acordo com o disposto no artº 1550 do CC são encravados os prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio. A questão que sempre se coloca é da sua comunicação direta com a via pública, não podendo aceitar-se que a comunicação com um caminho particular, por terreno do titular do prédio contíguo, que permite levá-lo até ao caminho público, obste ao encravamento;
4- O caminho utilizado pelo Réu CC para aceder à via pública, constitui um caminho privado, cujo utilização e atravessamento se encontra apenas dependente da boa vontade dos RR AA e EE, pois, apesar de se encontrar junto à vedação do terreno, o mesmo está inserido em terreno particular, logo, encontra-se encravado;
5- No que respeita aos restantes factos considerados provados e violadores dos preceitos dos artº 1376, nº 1 e 1377, al. a) do CC, a decisão recorrida, faz igualmente “letra morta” do teor de tais preceitos, valoriza a invocada exceção de aquisição por via da usucapião das parcelas resultantes da divisão, e, fazendo prevalecer esta;
6- A decisão recorrida merece ainda reparo, pois, para além do mais, a mesma não se apresenta sequer fundamentação suficiente que lhe permita justificar as razões do afastamento das consequências inerentes à violação dos preceitos dos artºs 1376 e 1377 do CC, com a inerente declaração da nulidade da escritura, com a sobreposição o regime da usucapião;
7- A sentença limita-se a enunciar a verificação dos requisitos da usucapião, reconhecendo as suas consequências e em caso algum justifica porque razão tal instituto se sobrepõe e afasta a nulidade prevista para a violação dos preceitos integrantes do Código Civil;
8- O disposto nos artº 1376 e 1377 do CC não podem deixar de ser considerados normas igualmente imperativas que conflituam com o regime da aquisição originária;
9- Para além do mais a escritura, porque contrária à lei, é nula, pois viola o interesse geral de toda a coletividade, estabelecidos nas citadas normas proibitivas, de natureza imperativa;
10- Por outro lado, o entendimento de que a expressão «disposição em contrário» ressalvada pelo art. 1287º do C. Civil, não abarcava a situação prevista no art. 1376º, assentava no facto de não existir qualquer norma excecional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião;
11- Se a usucapião visa satisfazer o interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer a proteção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, não é menos verdade que a proibição do fracionamento de acordo com o disposto nos artº 1376 a 1379 do CC assenta no Regime da Estrutura Fundiária que possui como objetivo “e criar melhores condições para o desenvolvimento das atividades agrícolas e florestais de modo compatível com a sua gestão sustentável nos domínios económico, social e ambiental, através da intervenção na configuração, dimensão, qualificação e utilização produtiva das parcelas e prédios rústicos”
12- Foi efetivamente na sequência da divergência de entendimentos na jurisprudência quanto à sobreposição da usucapião sobre a violação de tais preceitos e a relevância dos objetivos da estruturação fundiária, que levou à necessidade do legislador proceder à alteração do artº 48 da Lei 111/2016, dada pela Lei 89/2019 de 03.09, estabelecendo agora de forma inequívoca que a usucapião não faculta qualquer direito a quem a invoca desde que se mostre violado o disposto no artº 1376 do CC;
13- Ainda que tal alteração legislativa não estivesse em vigor à data da celebração da escritura, nem na data em que se iniciou a posse, no momento em que os RR fazem a invocação da usucapião, por ocasião da contestação, em 2021, sendo certo que a usucapião não opera de forma oficiosa, necessitando ser invocada, já se encontrava em vigor aquele inovador nº 3 do artº 48 da Lei 111/2015, que refere de forma expressa: “São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior.”;
14- Ora, se a lei fere de nulidade os atos de justificação, após a entrada em vigor da alteração dada pela Lei 89/2019, por igual razão, não se mostra possível declarar, por via judicial, que os RR adquiriram os prédios por usucapião, quando ocorra a violação do artº 1376 do CC.;
15- Com a alteração na redação dada pelo ao nº 1 do artº 1379, pela Lei 111/2015 de 27.08, passando a prever a nulidade em vez da anulabilidade, houve alteração dos prazos do exercício do direito de ação com vista à inutilização dos atos de fracionamento, existindo uma situação de sucessão de leis no tempo, com repercussões no prazo de exercício do direito de ação, que no fundo procede à alteração de um prazo em curso, esse direito transitório formal no que aos prazos respeita, rege-se pelo disposto no artº 297º do CC, enquanto disposição especial, relativa, precisamente à alteração de prazos e não perante o disposto no artº 12º do CC que versa sobre o direito transitório geral;
16- Estando, em causa um alongamento do prazo para requerer a invalidade de um ato - de três anos a partir da celebração do ato, para a todo o tempo - (respetivamente lei antiga e lei nova), tem aplicação o n.º 2 do artº 297º do CC que manda ter em conta o prazo mais longo, mas computar nele todo o tempo decorrido do prazo em curso, desde o seu momento inicial;
17- No caso, atendendo a que o novo prazo não tem limite definido não tem relevância efetuar qualquer cômputo do tempo já decorrido, havendo, tão só, que reconhecer que em face do normativo, em conjugação com o que atualmente se dispõe o art.º 1379º n.º1 do CC, bem como no art.º 286º do mesmo Código, que não operou a caducidade do direito de ação…”;
18- Assim a ação não estava sujeita a qualquer prazo de caducidade;
19- O artº 48 da Lei 111/2015 com a redação dada pela Lei 89/2019, constitui norma interpretativa, pois, o artigo 12º do Código Civil refere: “1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular;
20- Estabelece o artigo 13º do Código Civil que “A lei interpretativa se integra na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza.”;
21- Face a tal disposição legal é hoje claro que a usucapião, como forma originária de aquisição do direito de propriedade, não prevalece sobre o regime de 1376.º, do Código Civil, sendo a escritura pública que a titula nula e de nenhum efeito;
22- Por todo o exposto, mal andou a decisão recorrida, em ter declarado improcedente a
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