Acórdão nº 3/23.7T8LGA.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 20-04-2023

Data de Julgamento20 Abril 2023
Ano2023
Número Acordão3/23.7T8LGA.E1
ÓrgãoTribunal da Relação de Évora
Processo n.º 3/23.7T8LGA.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio de Lagoa – J1
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
(…) foi declarada insolvente e requereu o procedimento de exoneração do passivo restante. Notificada da decisão de indeferimento liminar veio interpor recurso.
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No seu essencial, a requerente alegou que reunia os respectivos requisitos legais e se comprometia a observar todas as condições exigidas, nomeadamente as previstas no n.º 4 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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A Administradora de Insolvência não deduziu oposição.
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Na parte que releva, a decisão recorrida continha o seguinte conteúdo: «entende-se, pois, que a interpretação da alínea c), n.º 1, artigo 238.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, compatível com o espírito da lei e que em nada contraria a sua letra, deve ser a de que essa alínea abrange também as situações de recusa do beneficio na sequência de incumprimento do devedor. Porque quando a lei fala em benefício da exoneração não pode estar só a referir-se a concessão efetiva da exoneração do passivo a final porque o beneficio da exoneração do passivo concedido ao devedor começa logo que lhe é deferido liminarmente o pedido. Desde esse momento, o devedor deixa de poder ser acionando pelos credores ainda que o processo de insolvência esteja encerrado.
Nesta medida, entende-se que no caso em apreço, se verifica a causa de indeferimento liminar prevista na alínea c), n.º 1, artigo 238.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas».
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A insolvente não se conformou com a referida decisão e as suas alegações contenham as seguintes conclusões:
«1 – O despacho recorrido viola os princípios do CIRE.
2 – Pois a recorrente em nada tentou lesar a massa.
3 – A recorrente não pode entregar algo que não possui.
4 – À recorrente não se pode aplicar o artigo 238.º do CIRE.
5 – A recorrente beneficiou da exoneração, mas foi lhe retirada.
6 – A recorrente deve ser beneficiada com a exoneração.
7 – A recorrente não deve ser punida como está a ser.
8 – Os 10 anos mencionados no artigo 238.º do CIRE não são de aplicação à recorrente.
9 – Pois a sua situação é diferente da do mencionado artigo.
10 – E se é possível nova insolvência porque não pode ser possível nova exoneração no caso vertente?
Nestes termos e nos demais, requer-se a V. Ex.ª que seja revogado o despacho proferido e deverá ser concedida a exoneração.
Assim se fará a costumada Justiça».
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as conclusões das alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação se a recorrida estava impedida de solicitar novamente o pedido de exoneração do passivo.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
1) A requerente nasceu a 26 de Novembro de 1977.
2) O seu agregado familiar é composto por si e pela filha menor.
3) Trabalha e aufere a retribuição mensal de € 850,00.
4) Vive em casa emprestada.
5) Não tem antecedentes criminais pela prática de crimes a que aludem os artigos 227.º a 229.º do Código Penal.
6) A aqui requerente já havia sido declarada insolvente por sentença proferida a 29 de Maio de 2017, proferida no processo n.º 673/17.5T8OLH.
7) Nesse processo a requerente pediu a exoneração do passivo restante, o que lhe foi deferido liminarmente por decisão proferida a 19 de Setembro de 2017.
8) A 5 de Setembro de 2022, foi proferida decisão que recusou a exoneração do passivo à requerente por incumprimento das obrigações a que alude o artigo 239.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Considerações gerais sobre a exoneração do passivo:
Como se pode ler no Preâmbulo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no que respeita aos insolventes singulares, procura-se conjugar de «forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica».
A exoneração do passivo restante constitui uma novidade do nosso ordenamento jurídico, inspirada no direito alemão (Restschuldbefreiung), determinada pela necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo[1]. Este instituto é igualmente tributário da Discharge da lei norte-americana (Bankruptcy Code).
O procedimento de exoneração do passivo restante encontra assento nos artigos 235.º a 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com particular enfoque no regime substantivo do instituto da cessão do rendimento disponível provisionado no artigo 239.º[2] do diploma em análise.
A exoneração do passivo restante traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento das condições fixadas no incidente[3]. Daí falar-se de passivo restante. Excepciona-se, contudo, as dívidas abrangidas pela estatuição do n.º 2 do artigo 245.º[4].
Para além das obras genéricas relacionadas com o direito falimentar, sobre a problemática específica da exoneração do passivo restante podem consultar-se as posições de Luís Carvalho Fernandes[5] [6], Catarina Serra[7] [8], Adelaide Menezes Leitão[9] [10], Ana Filipa Conceição[11] [12], Alexandre Soveral Martins[13], Catarina Frade[14], Cláudia Oliveira Martins[15], Francisco de Siqueira Muniz[16], Gonçalo Gama Lobo[17] [18], José Gonçalves Ferreira[19], Mafalda Bravo Correia[20], Maria Assunção Cristas[21], Maria do Rosário Epifânio[22], Paulo Mota Pinto[23] e Pedro Pidwell[24].
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4.2 – Da aplicabilidade do período de carência de 10 anos ao caso concreto:
O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência, tal como decorre da leitura da alínea c) do n.º 1 do artigo 238.º[25] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
À pergunta se apenas a exoneração final constitui causa de indeferimento liminar, a Meritíssima Juíza de Direito entende que também as situações em que houve cessação antecipada e recusa a final da exoneração devem constituir impedimento a que se aceite novo pedido de exoneração dentro dos 10 anos seguintes.
Em abono desta sua posição, utiliza a seguinte argumentação: «a extinção de dívidas é um benefício que é concedido à custa dos direitos dos credores. E, por isso, é exigido que, no período de prova, o insolvente faça sacrifícios nomeadamente, cumprindo as obrigações que sobre si impendem. Se não as cumpre e, em virtude disso, lhe é recusada a exoneração, e, ainda assim, lhe for permitido que venha com novo processo de insolvência, para poder novamente requerer exoneração do passivo e beneficiar de mais três anos em que os credores ficam inibidos de contra ele exercer os seus direitos, o efeito pretendido pelo instituto não é alcançado.
A permitir-se que o devedor venha sistematicamente com novos pedidos de exoneração, não obstante tenha incumprido as obrigações em processos anteriores, é permitir-lhe fazer um uso abusivo do processo em prejuízo dos seus credores».
Maria Assunção Cristas assinala que a admissão do incidente de exoneração pressupõe que «o devedor tenha tido um comportamento anterior ou
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