Acórdão nº 2845/22.1T8BRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2024-01-11

Ano2024
Número Acordão2845/22.1T8BRG.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA
intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra
BB e CC,
pedindo que seja anulado o testamento outorgado, em .../.../2020, por DD, com fundamento no art.º 2199º do CC, e em função da incapacidade acidental da testadora à data da outorga do mesmo.
Os réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção.
Findos os articulados, foi dispensada a realização de audiência prévia, fixado o valor da acção, proferido despacho saneador, identificado o objecto de litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência final foi prolatada sentença que julgou totalmente improcedente a acção.

Inconformada com tal sentença, dela apelou a autora, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
“I. A Autora, aqui Recorrente, intentou ação declarativa contra os Réus BB e CC, peticionando, em suma, a anulação o testamento sub judice, outorgado pela sua irmã DD, por violação do disposto no artigo 2199.º do Código Civil, em função da sua incapacidade acidental à data da outorga do testamento.
II. Para tanto, alegou que a sua irmã faleceu a .../.../2021, no estado civil de viúva e que, um ano antes de falecer, no dia 4 de junho de 2020, a sua irmã DD, outorgou testamento a favor dos aqui Réus.
III. Por duvidar da capacidade da sua irmã para emitir aquela sua declaração de vontade, a Recorrente requereu ao Hospital ..., onde a sua irmã foi assistida e consultada por diversas vezes, o acesso à respectiva informação clínica.
IV. Requerimento que foi deferido sendo, da mesma forma, numa fase posterior do processo, juntos aos autos os documentos/relatórios da falecida do período em que se encontrou institucionalizada na EMP01..., instituição (lar de idosos) localizada em ....
V. Dos documentos enviados pelo Hospital ... constam vários momentos relevantes que atestam a incapacidade que sofria a sua irmã, desde logo os inúmeros relatórios de onde consta a demência senil que padecia, nomeadamente:
a) 11 de março de 2020 (a propósito de uma queda): “88 anos, dependente AVD, desorientada no tempo e no espaço”;
b) 2 de junho de 2020, 2 dias antes da outorga do testamento, (a propósito de consulta não presencial de senologia) “88 anos, casada, consciente, colaborante, desorientada no tempo e no espaço”; ao vir para ... não informou familiares do histórico clínico que apenas foi revelado após consulta de médico de família em novembro 2019);
c) 16 de julho de 2020 (aquando da realização de um TC do crânio) “perda de conhecimento, cefaleia bitemporal, tonturas, Controlo.”; acrescentando a informação deste mesmo dia que a mesma “Sabe que está no hospital, mas não sabe qual. Desorientada no tempo”;
d) 1 de agosto de 2020 (a propósito de uma consulta de ginecologia): “88 anos, consciente, colaborante, desorientada no tempo e no espaço”;
e) 27 de outubro de 2020: “desorientada no tempo e no espaço”.
VI. Como se disse, foi junto pela EMP01... os registos clínicos da falecida, donde constavam informações como:
a) Atestado de doença, emitido pelo seu médico de família em Lisboa, “encontra-se dependente de terceiros para AVD por limitações severas de predomínio cognitivo”;
b) Em sede de consulta de neurologia, em 22 de julho de 2019: “muito repetitiva, esquece-se de tudo, não reconhece as pessoas na instituição, não se orienta no tempo, não conhece os espaços no lar”;
c) ainda que em 13 de janeiro de 2020 se admita que a mesma “se encontra mais orientada e com comportamento bom”;
d) 16 de julho de 2020, no mesmo dia em que realizou um TAC no Hospital ... e pouco depois de 1 mês da outorga do testamento, o médico da EMP01... declarou “para os devidos efeitos que a utente acima identificada não se encontra capaz do uso das suas capacidades físicas e cognitivas, estando dependente para as atividades da vida diária”.
e) 4 dias após esta ocorrência, em .../.../2020: “marido falecido… nem se lembra”.
VII. Sobre o primeiro atestado mencionado no número anterior, que por razões alheias à Autora não se encontrava datado, foi requerido pelo Tribunal a quo que o médico de família da falecida esclarecesse a sua data.
VIII. O referido médico veio aos autos informar que a sua utente, DD, foi acompanhada por si desde 1995 e até 2019, que a mesma agravou muito o seu estado de saúde e dependência de terceiros nos últimos anos de vida, confirmando que realizou este documento, informando ainda que as últimas consultas da D. DD foram realizadas em contexto domiciliário, uma vez que a doente já não era transportável e encontrava-se muito dependente de terceiros em termos físicos e em estado demencial avançado, apesar de ter sido medicada para o efeito.
IX. Concluindo que o mencionado documento seria de junho de 2019.
X. Procedeu-se à audiência final, com observância das formalidades legais, onde ficaram provados os seguintes factos:
“(…)
XI. Por tudo quanto exposto, ao discutido em audiência de julgamento, o tribunal a quo julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo os Réus do peticionado.
XII. Contudo, salvo o devido respeito, não pode a Recorrente concordar com o teor da decisão proferida.
XIII. Porquanto, no caso em concreto, o tribunal a quo considerou que a Autora, ora Recorrente, cumpriu o ónus da prova dos factos demonstrativos da incapacidade acidental da testadora, sua irmã, no momento da feitura do testamento, que sobre si recaía nos termos dos artigos 2199.º e 342.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
XIV. Assim, provando a referida situação de incapacidade, in casu demência senil, incumbia aos Réus, enquanto beneficiários do testamento fazer a prova de que, no momento da outorga do mesmo, apesar da mencionada doença de que sofria, a testadora não foi influenciada pelo concreto estado demencial em que se encontrava.
XV. O tribunal a quo considerou que o testamento foi lavrado num momento de lucidez da falecida, absolvendo os Réus do pedido.
XVI. Tornando-se claro, como veremos infra, que a decisão enferma de erro de julgamento.
XVII. Nos termos do artigo 640.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, o ónus da impugnação da matéria de facto corre a carga da Recorrente devendo esta, obrigatoriamente, especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
XVIII. Nesta medida, os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar prendem-se com uma definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da matéria de facto diversa da decisão recorrida) – cfr. Acórdão Tribunal da Relação de Guimarães, de 5 de março de 2020, proc. 848/18.OT8CHV.G1.
XIX. Quanto à matéria dada como provada e não provada, impunha-se considerar factos que não foram considerados como provados, requerendo-se que se considere como provada a seguinte matéria da petição inicial:
Artigo 18.º: o estado de saúde da outorgante, assim como a patologia “demência senil” que a assombrava, como se pode observar em função da factualidade exposta, era claramente debilitante para as suas funções cognitivas, assim como era recorrente e não apresentava melhorias com o tempo, pelo contrário”.
Artigo 19.º: apresentando este quadro clínico já antes da outorga do testamento, poucos dias antes da outorga do testamento e assim continuou até à data da sua morte.
Sendo assim de presumir que assim se encontrava no momento da outorga do testamento.
Artigo 50.º: pelo que se presume que na data do mesmo ato aquele estado se mantinha sem interrupção.
XX. Relativamente aos factos dados como provados, que não deviam ser como tal considerados, requer-se que se considere como não provados (dos factos dados como provados enunciados na sentença):
35: Na EMP01... a falecida, até ter o AVC em abril de 2021, interagia com os funcionários que a acompanhavam diariamente, dava ordens, cumpria as rotinas, compreendia o que lhe era dito, mantinha um discurso lógico e coerente.
40: A DD transmitiu ao Exmo. Notário, de viva-voz, a sua vontade, naquele dia 4 de junho de 2020.
41: que lavrou o testamento em conformidade com a mesma. 42: nenhuma dúvida ou reserva se lhe tendo suscitado.
43: a testadora teve a consciência de efetuar a declaração negocial que consta do testamento em causa nos autos, sendo naquele momento, capaz de entender e querer o sentido da declaração testamentária consoante do mesmo, tendo assinado tal testamento, sabendo o que declarava e assinava, que representava a sua vontade.
XXI. Vejamos, dos documentos juntos, quer do Hospital ..., quer da EMP01..., bem como dos depoimentos ouvidos em Tribunal, impunha-se decisão no sentido mencionado nos números anteriores.
XXII. Desde logo porque foram apresentadas duas versões completamente diferentes da mesma D. DD.
XXIII. Em primeiro lugar, por parte dos Réus, relatam uma D. DD autónoma, autoritária, que manteve sempre o seu discernimento e poder de decisão (veja-se, neste sentido, como explanado na sentença, na respetiva motivação, o depoimento de EE, FF, GG, HH e II).
XXIV. Utilizando todas as testemunhas as mesmas expressões para a descrever, relatando uma versão pouco verosímil e q.b. concertada, veja-se os seus depoimentos:
. II: (2:19): “era uma pessoa com uma personalidade bastante forte, não considero, é assim, quando convivemos com pessoas idosas percebemos logo quando há demências, alzheimer (…), esquecimentos de idade todos têm, mas eu acho que ela tinha a cabecinha bastante no sítio e dizia coisas certas, embora algumas trocas, mas não considero que houvesse...

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