Acórdão nº 2673/21.1YRLSB-7 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-02-08

Data de Julgamento08 Fevereiro 2022
Ano2022
Número Acordão2673/21.1YRLSB-7
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.–RELATÓRIO:


1.M….., com nacionalidade brasileira, residente na Rua…., Brasil, intentou acção de revisão da sentença estrangeira, com processo especial, requerendo deste tribunal que seja confirmado e reconhecido o julgado brasileiro que a reconheceu como filha socioafetiva de J..... .

Alegou para tanto, que nasceu em 27 de março de 1952, no Brasil, sendo criada desde que tinha 1 mês de idade, como filha legítima de J ….. e A ….., a quem foi confiada a sua guarda.
A Requerente propôs Ação Declaratória de Paternidade Socioafetiva contra Herdeiros Incertos e Não Sabidos de J ..…, na qual, por Sentença de 23 de Outubro de 2018, foi deferido o pedido de Reconhecimento da Paternidade Socioafetiva e determinada a inscrição na certidão de nascimento da avoenga paterna, F ..… e O ..…, conforme certidão de nascimento emitida em 8.05.2019 pelo 10º Registo Civil do Rio de Janeiro.
Mais alegou que, por força do artigo 56º, nº 1 do Código Civil português, à constituição da filiação é aplicável a lei pessoal do progenitor, à data do estabelecimento da relação, sendo assim a lei brasileira a aplicável que não distingue actualmente entre filhos legítimos e ilegítimos, à semelhança do que vigora na ordem jurídica portuguesa, conforme disposto no artigo 352º, do mesmo código.
Termina pedindo que a sentença proferida pelo tribunal brasileiro seja revista e reconhecida nos termos da previsão do art. 978.º, n.º 1, do C.P.C., carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal, e tendo como finalidade a instrução do pedido de atribuição de nacionalidade por parte da requerente.
Juntou a sentença judicial revidenda pela forma própria, bem como os documentos registrais conexos.
***

2.A Ilustre Magistrada do Ministério Público, contestou, alegando em síntese que, na ordem jurídica portuguesa não se encontra correspondência entre a paternidade socioafectiva e qualquer outra figura semelhante, antes prevalecendo o princípio da verdade biológica, ou, nos estritos termos da lei, o vínculo filial decorrente da adopção. Assim, face ao enquadramento constitucional português, nomeadamente o princípio da identidade pessoal ligado ao da verdade biológica no estabelecimento da filiação, constata-se que a decisão revidenda, se reconhecida, conduziria a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, concluindo, em consequência, pela improcedência da revisão.
***

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 982º, nº1, do CPC.
***

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
Não existem vícios que anulem todo o processo.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias e detêm legitimidade.
Não se verificam outras excepções ou nulidades a conhecer.
***

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II.FUNDAMENTAÇÃO

A.Os Factos
1.Através da sentença datada de 23.10.2018, proferida pelo Tribunal de Justiça da Comarca da Capital, 9ª Vara de Família, Rio de Janeiro, Brasil, M ..... foi reconhecida como filha socioafectiva de J ..…, passando a ter nos seus documentos o nome dos seus avós paternos, F ..… e O ..… .

2.Da certidão de nascimento da requerente emitida pelos serviços do registo civil daquele país, junta a fls.6, consta inscrito :
a)-no averbamento datado de 11.01.1974 foi registada a adopção de M ..... a favor de J ....., conforme escritura do Tabelião do 19º Ofício de notas, conservando aquela o nome de origem;
b)-no averbamento de 22.10.2014, por ordem do Juiz da 8ª Vara de Família da Comarca da Capital, consta o termo de reconhecimento materno da registrada, passando a ser filha de A ....., e avós maternos M ..... e P ..... mantendo aquela o mesmo nome;
c)-no averbamento de 08.05.2019, por mandado do Juiz da 9ªVara de Família da Comarca da Capital, referente à sentença proferida em 29.10.2018 e processo 00004047-19.2017.8.19.0001, passou a constar os nomes dos avós paternos da registrada, F ..… e O ..….

B.Do Direito

1. Sinopse factual e motivação do pedido
A requerente, cidadã de nacionalidade brasileira, nascida em 27.03.1952, alegou que, desde um mês de idade foi criada por J ..…, a quem foi confiada a sua guarda e, desde então tida e considerada como sua filha, pelo que tendo obtido sentença proferida pelo tribunal brasileiro de reconhecimento da respectiva paternidade socioafectiva, com inscrição registral da avoenga paterna, pretende o reconhecimento e revisão do julgado, a fim de instruir o pedido de atribuição da nacionalidade portuguesa.
2.O quadro normativo e axiológico da revisão de sentença estrangeira
A situação sub iudice incide sobre os efeitos a produzir na ordem jurídica interna, em razão de decisão judicial de tribunal do Brasil, relativa a direitos privados, fundada na lei vigente no país de origem e cujo reconhecimento vem peticionado.
Na ordem jurídica portuguesa estabelece o artigo 978º, nº1, do Código de Processo Civil, que nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, terá eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada, enquanto afloramento do princípio da perpetuatio jurisdicionis ou perpetuatio fori.
Com apelo aos ensinamentos de Ferrer Correia, “(…) reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos.” [1]

O artigo 980º do actual Código de Processo Civil define quais os requisitos /condições de que depende a revisão de sentença estrangeira, adoptando o sistema que a doutrina classifica de reconhecimento de delibação, “(…) segundo o qual o reconhecimento da sentença pressupõe a verificação prévia da sua regularidade, isto é, pressupõe a verificação no caso concreto das condições de que segundo a lei do país requerido depende a atribuição de eficácia às decisões dos tribunais estrangeiros (…).” Este sistema – delibação ou formal, explicita o mesmo autor “(…) tendo o acto jurisdicional (como todo o acto de soberania) um valor forçosamente limitado ao Estado de onde emana, o efeito próprio da sentença de delibação seria declarar que determinado evento jurídico se produziu (embora na órbita de uma lei estrangeira), ou, noutros casos, criar, modificar ou extinguir, ante a ordem jurídica do foro, a relação de direito que constituiu o objecto da sentença estrangeira. Daqui a conclusão de que, de um ponto de vista formal, não se trataria de uma decisão única com efeitos reconhecidos por duas ordens jurídicas diferentes, mas verdadeiramente de duas decisões diferentes, conquanto de conteúdo idêntico, operando cada uma os seus efeitos nos eu respectivo Estado.”[2]

No caso ajuizado, submetida a sentença revidenda ao crivo necessário à confirmação do julgado, a que alude o artigo 980º do Código de Processo Civil, conclui-se, em segurança, que concorrem as condições indicadas sob as alíneas a) b) c) d) e e) do dispositivo legal.

3.A reserva da ordem pública internacional
O obstáculo da revisão da sentença em controversão prende-se com a (in)verificação do requisito ínsito na al) f) daquele normativo, a exigir que a confirmação da sentença” não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”.

Importará, assim, densificar esta reserva legal da ordem pública internacional do Estado Português, na aplicação de uma norma estrangeira, pela via indireta da execução de sentença estrangeira.
A lei não fornece uma definição de “ordem pública internacional”, tratando-se, por conseguinte, de um conceito indeterminado.
Em termos breves, o conceito de “ordem pública internacional “é assumido pela doutrina e pela jurisprudência, como o repositório de vários critérios gerais de orientação, com vista a auxiliar o julgador na aproximação à revisão do julgado estrangeiro, em ordem a extrair o juízo de (in)compatibilidade, aferível pelo resultado do reconhecimento, o que implica um “exame global” e que esse resultado seja, em concreto “manifestamente incompatível” com aqueles princípios.
Significando, por um lado, que se anteveja uma “intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que informam a ordem jurídica portuguesa”, e por outro, que se esteja perante “valores muito significativos”. [3]
Neste sentido convocam-se os ensinamentos da doutrina especializada que seguem.

De acordo com Ferrer Correia, “(…) não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja. Ao invés, pode a lei em que se apoiou a decisão não ofender, considerada abstractamente, a ordem pública, mas a sua aplicação concreta assentar em motivos inaceitáveis.” [4]

Em idêntico caminho, Luís de Lima Pinheiro acentua a tónica no resultado do reconhecimento, devendo fazer-se um exame global, que poderá ter em conta os fundamentos da decisão e o processo- «Enquanto limite ao reconhecimento dos efeitos de uma decisão estrangeira a cláusula de ordem pública internacional caracteriza-se, à semelhança do que se verifica com a sua atuação como limite à aplicação do Direito estrangeiro ou não-estadual (supra § 47 B), pela excecionalidade: só intervém quando o reconhecimento for manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da ordem jurídica do foro (…).»[5]

Refere neste âmbito Menezes Cordeiro, que a ordem pública internacional «(…) exprime um conjunto de princípios nacionais que vedam a
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT