Acórdão nº 2417/20.5T8BRR.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 18-04-2023

Data de Julgamento18 Abril 2023
Ano2023
Número Acordão2417/20.5T8BRR.L1-1
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam as Juízas da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa


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1.Relatório


MRG[1] apresentou-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante.
Foi declarada insolvente por sentença de 25/11/2020, transitada em julgado.
Foi dispensada a realização de assembleia de credores.
O Administrador da Insolvência fez constar no Relatório, a sua posição de não oposição à concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
A Autoridade Tributária opôs-se à concessão, apenas no tocante aos créditos fiscais.
Em 02/02/2021 foi proferido o despacho previsto no art. 239º do CIRE, fixando-se como valor para assegurar o sustento do insolvente em valor equivalente a um e meio salários mínimos nacionais.
HSC, SA, requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, invocando o incumprimento pela insolvente das obrigações a que está obrigada, nomeadamente, por ter ocultado ou dissimulado rendimentos que auferiu, por não ter dado cumprimento às solicitações de informação que lhe foram dirigidas pelo Tribunal e por não ter comprovado que se encontra/encontrava inscrita no Centro de Emprego e as diligências que tem realizado com vista à procura ativa de emprego.
O sr. Fiduciário pronunciou-se favoravelmente à cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
O Ministério Público aderiu aos fundamentos invocados pela credora HSC, requerendo a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
A insolvente e os demais credores não se pronunciaram.

Por despacho de 25/01/2023 o tribunal decidiu: «Face ao exposto, nos termos do disposto no art. 243.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, declaro a cessação antecipada do procedimento de exoneração e, em consequência, recuso a exoneração do passivo restante da devedora MGR.»

Inconformada apelou a insolvente pedindo seja revogada a sentença que decretou a cessação da exoneração e a sua alteração para outra que mantenha a exoneração já proferida, formulando as seguintes conclusões:
1.–A sentença recorrida viola os princípios do CIRE
2.–Pois o recorrente não possui rendimentos
3.–E por essa razão não apresentou os ditos rendimentos
4.–Porque pensou que o senhor AJ pudesse proceder a sua pesquisa
5.–E confirmar o que o insolvente afirma
6.–Que, as não existe qualquer prejuízo para os credores
7.–Isto porque durante este tempo todo o recorrente não auferiu rendimentos
8.–E a cooperação que deve existir entre os agentes deverá ser recíproca
9.–E no caso em apreço inexistiu
10.–Ademais o recorrente demonstrou os seus rendimentos
11.–Até a TVI o fez
12.–E bem assim porque a casa onde habitava foi vendida no âmbito da insolvência
13.–Mas o seu mandatário sempre foi notificado e sempre cooperou
14.–Pelo e sem delongas a presente peca por excessiva pois penalizava duplamente quem já se encontra fragilizado.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho de 27/02/2023 (ref.ª 423521377).

Foram colhidos os vistos.

Cumpre apreciar.
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2.–Objeto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas a única questão a decidir é a verificação de se estão reunidos os requisitos para que seja cessado antecipadamente o procedimento de exoneração, nos termos do disposto no art. 243º do CIRE.
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3.–Fundamentos de facto:

Foi proferida, em 1ª instância, a seguinte decisão relativa à matéria de facto[2]:

“Dos dados dos autos e dos documentos juntos resultam provados os seguintes factos com relevância para a decisão:
1-MRG foi declarada insolvente por sentença de 25/11/2020, transitada em julgado;
2-por despacho de 02/02/2021, transitado em julgado, foi fixado em um e meio salários mínimos nacionais o montante indispensável ao sustento digno da insolvente, tendo-se tomado em consideração o facto de se encontrar desempregada e de o seu agregado familiar integrar um filho menor;
3-o período de cessão de rendimentos iniciou-se em Fevereiro de 2021;
4-foram reconhecidos créditos sobre a insolvência no montante total de € 1.120.437,71;
5-o processo de insolvência foi declarado encerrado por despacho de 28/11/2022, após rateio final, tendo permanecido em dívida após a liquidação o valor de € 600.672,83;
6-em 10/03/2022, o sr. fiduciário informou os autos que no primeiro ano do período de cessão a insolvente encontrou-se desempregada, sem auferir qualquer subsídio, não tendo sido entregues quaisquer montantes à fidúcia;
7-por despacho de 28/03/2022 foi determinada a notificação da insolvente para, no prazo de 10 dias, informar quais as diligências realizadas para a obtenção de emprego, oferecendo prova de tais diligências, e informar a que título exerce funções como comentadora no reality show transmitido pela TV denominado “Big Brother Famosos” e quais os rendimentos obtidos pelo exercício de tais funções, seja directamente, seja por interposta pessoa (individual ou colectiva);
8-na ausência de resposta da insolvente, por despacho de 20/04/2022, foi renovado o despacho anterior, com a advertência de que a falta de colaboração com o tribunal poderia acarretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante;
9-em resposta, por requerimento de 27/04/2022, a insolvente juntou aos autos prova de entrega da declaração de IRS do ano de 2021, na qual se mostra declarado o rendimento de propriedade intelectual no montante de € 109,94;
10-os serviços prestados pela insolvente a TV, S.A., como comentadora do programa Big Brother eram pagos à empresa EU, Lda., com sede na Rua …, tendo sido pagos a esta sociedade de Janeiro a Junho de 2022 a quantia de € 12.054, IVA incluído, por conta daqueles serviços;
11-por despacho de 17/05/2022, foi novamente determinada a notificação da insolvente para comprovar que se encontra inscrita no Centro de Emprego e as diligências que tem realizado com vista à procura activa de emprego;
12-em resposta, por requerimento de 30/05/2022, a insolvente juntou aos autos documento escrito datado de 01/06/2022, intitulado “contrato de trabalho a termo certo”, celebrado entre EU, Lda., e a insolvente, nos termos do qual esta é admitida para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de administrativa e consultora por conta da primeira, pelo período de seis meses, renovável por igual período, com início em 01/06/2022;
13-no referido documento não é estabelecido local nem horário de trabalho, não é justificada a contratação a termo e não é fixada a retribuição devida;
14-por despacho de 15/06/2022, foi determinada a notificação da insolvente para, em 10 dias, informar qual a remuneração acordada, o horário de trabalho e o local de prestação do trabalho, bem como para, no mesmo prazo, juntar aos autos certidão do registo comercial da entidade empregadora e documento comprovativo da comunicação à Segurança Social da admissão da insolvente como trabalhadora, nada tendo sido consignado nos autos;
15-foi, ainda, por força do mesmo despacho, a insolvente notificada, na sequência do requerido pela credora HSC, S.A., para se pronunciar sobre a informação prestada pela “TV, S.A.”, o motivo pelo qual ocultou rendimentos aos presentes autos, quantificar tais rendimentos e, bem assim, esclarecer a relação que tem com a sociedade comercial com a firma EU, Lda., e com a sua sócia-gerente, permanecendo a insolvente em silêncio.
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4.–Fundamentos do recurso:

A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.
Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[3]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor, mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art. 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[4]
Essa tensão entre dois interesses opostos reflete-se nas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do
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