Acórdão nº 2359/21.7T8VRL.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2023-06-22

Ano2023
Número Acordão2359/21.7T8VRL.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: José Flores
2ª Adjunta: Sandra Melo
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I- RELATÓRIO:

AA, divorciada, residente na Rua ..., ..., iniciou uma ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, CC, todos residentes na Rua ..., ..., ..., ..., ..., peticionando a condenação destes a: (a) reconhecerem que o prédio rústico da autora identificado no art.º 1.º da P.I., beneficia de uma servidão de aqueduto cujo percurso atravessa o prédio rústico propriedade do 1.º R., identificado no art.º 6.º e 27.º da P.I; (b) efetuarem os trabalhos necessários para reconstrução e desobstrução do rego, a céu aberto, que atravessam o seu rústico e faz parte da servidão de aqueduto da Requerente, pelo qual a “Água da ...” chega ao rústico melhor identificado no art.º 1.º da P.I; (c) no futuro se absterem de praticar qualquer ato de perturbação sobre a servidão de aqueduto da A; e (d) ao pagamento à autora da quantia de €1250,00 a título de compensação pelos danos sofridos.

Para tanto alega, em suma, o seguinte:

A autora é dona e legítima proprietária do prédio rústico denominado “...”, sito em ..., União das Freguesias ... e ..., concelho ..., o qual veio à sua posse por via sucessória, nas partilhas por óbito de seus pais. Por seu turno, o 1º réu é dono do prédio rústico denominado ..., sito no Lugar ..., União das Freguesias ... e ..., sendo os 2º e 3ª ré seus pais, com ele residentes.
Mais refere que o seu prédio beneficia da designada “água da ...”, ao longo de todo o ano, pois há mais de 50 anos que essas águas são por si usadas, pelos seus progenitores e avós, para rega das culturas do seu prédio rústico, sendo que essas águas se encontram repartidas desde tempos imemoriais pelos habitantes do Lugar ..., no período de 8 de Setembro a 23 de Junho pela chamada “Semana de Inverno”, e de 24 de Junho a 7 de Setembro pela camada “Semana de Verão”, tendo a A adquirido o direito às mesmas por usucapião.
Essas “águas da ...” têm origem na encosta do monte do Lugar de ..., sendo posteriormente encaminhadas para o prédio rústico da autora através de uma servidão de aqueduto, a céu aberto, por um rego que atravessa o prédio do 1º réu, desembocando de seguida, a céu aberto, num rego com a extensão de cerca de 3m, que atravessa um caminho, até ao prédio rústico da A.
Acontece que os RR têm impossibilitado a A. de fazer uso da servidão de aqueduto que atravessa o prédio do 1º réu, na medida em que o 2º réu tapou a entrada do rego, naquele prédio rústico, com pedras e paus, e lá implantando um pilar de betão, destruindo esse rego em grande parte. Colocaram os RR ainda pedras, paus e entulho sobre o leito do rego, de forma a impedir a água de seguir o seu curso.
Termina a A dizendo que sofreu danos com a atitude dos RR, que discrimina, os quais computa no valor de €1250,00.
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Os réus CC e CC apresentaram contestação, aceitando a descrição e propriedade dos prédios rústicos de ambas as partes, com o esclarecimento de que o prédio rústico propriedade do 1º réu é granjeado pelo 2º e 3º réus, com tolerância do primeiro, sendo que aquele raramente se desloca ao mesmo.
Mais referem que a designada “água da ...” é água da nascente do Rio ..., a qual escorre para uma pequena lagoa, sendo posteriormente canalizada para os terrenos, através de canais de condução construídos pelo Estado, fazendo os mesmos parte do domínio público hídrico, nos termos dos arts e da Lei n.º 54/2005, de 15/11; concomitantemente, nos termos do disposto no art.º 58º do mesmo diploma legal, a água assim canalizada deverá ser considerada de uso e fruição comuns, insuscetível de apropriação pela autora.
Mais consideram que o rego existente no prédio do 1º Réu não é um rego de servidão, mas é um rego de uso exclusivo para rega dos próprios proprietários do prédio, e que no prédio daquele existe um outro rego, na sua estrema nascente, de condução da água para outros prédios inferiores.
Consideram ainda que o prédio da autora tem, de facto, direito a água para rega, mas não à designada “água da ...”, mas antes à água do ribeiro designado “...”.
Impugnam ainda as condutas de que a autora os acusa, de obstrução dos canais de condução das águas, peticionando a final a improcedência da ação.
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A convite do Tribunal, a autora especificou os danos em que considera ter incorrido, tendo os réus exercido o correspondente contraditório sobre os mesmos.
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Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte decisão:
“Termos em que o Tribunal julga esta acção totalmente improcedente, absolvendo os réus do peticionado.
Custas pela autora (art 527º, n.º 2 do Cód de Proc Civil)”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a A interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“…10. O Tribunal não valorou correctamente os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF;
11. O Tribunal deveria ter considerado provado que a autora, por si e pelos seus antecessores, há mais de 20 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, convencida de que não lesava direitos alheios, usa o rego devidamente identificado na Sentença em 11. a. dos factos provados para conduzir a chamada Água da ... até ao seu prédio rústico.
12. O Tribunal deveria ter considerado provado que a Apelante pelo menos tem direito a usar a água para regar ás terças feiras – nove horas - e aos sábados - seis horas;
13. O Tribunal deveria ter considerado provado que a água que a Apelante usa para regar é armazenada num reservatório,
14. Que o mencionado reservatório já era propriedade dos antepassados da Apelante, onde a água é armazenada e daí é que é encaminhada para o prédio rústico da Apelante atravessando o rústico propriedade do sr. BB;
15. O tribunal Deveria ter dado como Provado que as chamadas Aguas da ... não são águas de domínio público;
16. Que as Águas da ... são usadas apenas por aqueles que desde tempos imemoriais delas beneficiam, nos mesmos termos em que os seus antepassados as usavam, sendo encaminhadas para os reservatórios.
17. E, no caso aqui nos autos, o reservatório da Apelante apenas é enchido nos dias em que esta tem direito a água para regar.
18. O Tribunal deveria ter considerado provado que, nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º 5.º do C.P.C., como facto que é complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado, resultante da instrução da causa, que o pai da A. custeou parte dos melhoramentos que foram realizados no sistema de rega, tendo beneficiado uma poça que usava para receber as águas que depois eram encaminhadas para o rústico que atualmente é propriedade da Apelante.
19. Que as Mencionadas Águas da ... são geridas desde tempos imemoriais pelos seus utilizadores, sendo estes quem faz a manutenção dos regos, a divisão da água para cada um dos utilizadores, bem como foram os seus utilizadores que idealizaram todo o sistema de rega há muitos, muitos anos atrás, sistema de rega que ainda hoje é o mesmo;
20. O tribunal deveria ter considerado como provado que todos os utilizadores da Água da ... custearam na medida do uso que fazem da água as obras de beneficiação para um uso mais eficiente da água.
21. O tribunal deveria ter considerado provado que a Apelante usa a Água da ... para encher o seu depósito;
22. O Tribunal não fez uma interpretação correta da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro, em concreto da al. d) do art.º 5.º. art.º 6.º e da al. e) do art.º 7.º da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro.
23. Não se trata de reservatórios de abastecimento de água às populações em geral e que são geridos pelas respetivas entidades administrativas para esse efeito;
24. No caso dos presentes autos não existe qualquer entidade administrativa que tutele o regadio da aldeia de ...;
25. A organização do regadio remonta a tempos imemoriais, que passou de geração em geração, na medida em que conforme os terrenos passam de geração em geração, são transmitidos acompanhados do direito a água para rega.
26. A água que a Apelante usa para regar é a água que se deverá considerar sua propriedade;
27. Por se encontrar armazenada num reservatório propriedade da Apelante;
28. Sendo a Apelante proprietária da Água sempre terá direito a encaminhar, como sempre encaminhou as suas águas através do prédio do R. BB;
29. O que já sucede há mais 50 anos;
30. Tendo consequentemente, de se aplicar o n.º 1 do art.º 1561.º do Código Civil que estatui que “Em proveito da agricultura ou da indústria, ou para gastos domésticos, a todos é permitido encanar, subterrâneamente ou a descoberto, as águas particulares a que tenham direito, através de prédios rústicos alheios
31. É título de aquisição, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões, nomeadamente a usucapião, quando acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes;
32. Pelo que, deverá ser considerado que a água não é água de domínio público fluvial, mas sim de domínio privado, estando reunidos para a constituição da servidão de aqueduto, por usucapião.
33. E em consequência a Acção teria de ser julgada pelo menos parcialmente procedente.
Termos em que (…) se deverá concluir que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por uma nova sentença que julgue a presente Acção parcialmente procedente por provada, nos termos alegados na petição inicial…”
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Os recorridos vieram apresentar Resposta ao recurso interposto pela A, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso são:

- A de saber se é de admitir o recurso da matéria de facto; e
- Se, mesmo perante a matéria de facto dada como...

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