Acórdão nº 2333/19.3T9LRS.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-03-22

Ano2022
Número Acordão2333/19.3T9LRS.L1-5
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

*


I–Relatório


O arguido RO , …, foi condenado no processo nº 2333/19.3T9LRS do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 3, por sentença datada de 13.10.2021, pela prática, em autoria material, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 e 155º, n.º1, al. a) ambos do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à razão diária de 5 euros, o que perfaz a multa global de € 600 (seiscentos euros).

Inconformado com a referida condenação, veio o arguido interpor recurso, pedindo que a decisão do tribunal de 1ª instância seja alterada, «devendo proceder a invocada excepção de caso julgado e consequentemente o arguido RO ser condenado por um só crime de violência doméstica, na forma continuada, e manter-se apenas a condenação proferida no âmbito do processo 202/18.3PBLRS, já transitada em julgado».

Extraiu da respetiva motivação as seguintes conclusões:
I–O arguido RO foi acusado, sob a forma de processo comum, com intervenção do tribunal singular, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b), 4 e 5 do Código Penal, incorrendo, ainda, nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e de proibição de uso e porte de arma, pelo período de seis meses a cinco anos e de obrigação de frequência de programas específicos de violência doméstica.
II–Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal.
III–Em sede de alegações a Defesa do arguido invocou a excepção do caso julgado atendendo a que o arguido foi julgado e condenado no processo 202/18.3PBLRS pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da aqui ofendida, sendo que existe uma unificação da conduta uma vez que os factos foram praticados de uma forma homogénea, num período temporal próximo e como tal constituem uma continuidade daquele primeiro processo crime.
IV–O Tribunal a quo entendeu que atendendo ao lapso de tempo decorrido após os factos apreciados no processo 202/18.3PBLRS e a alteração no comportamento do arguido após a suspensão do processo que estaríamos perante uma nova resolução criminosa e que os factos em apreço no presente processo constituíam um novo crime, pelo que considerou improcedente a invocada excepção de caso julgado.
V–Não obstante, o Tribunal a quo considerou que, pese embora se tenha dado como assente que o arguido enviou inúmeras sms à ofendida, não se podia concluir que o seu teor fosse injurioso ou ameaçador para com a ofendida e que as mesmas não colocavam em causa a dignidade humana da ofendida, nem que por via delas a ofendida ficou ostensivamente desprotegida na sua individualidade própria de pessoa humana pelo que tais mensagens não eram aptas a integrar o crime de violência doméstica.
VI–No entender do Tribunal a quo analisada a conduta do arguido a mesma integraria apenas a prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art.153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a) do Código Penal, pelo que julgou a acusação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:
- Absolver o arguido da prática do crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado;
- Condenar o arguido pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 e 155º, n.º1, al. a) ambos do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à razão diária de 5 euros, o que perfaz a multa global de € 600 (seiscentos euros).
VII–Mais foi condenado o arguido nas custas do processo, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça, já se tendo em atenção o disposto no artigo 344º do C.P.P.
VIII–O Arguido, RO não se conforma com a sentença que foi proferida uma vez que no seu entender existe uma unificação da conduta entre os factos pelos quais o arguido foi julgado e condenado no âmbito do processo n.º 202/18.3PBLRS que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 1 e os factos pelos quais foi julgado no presente processo uma vez que os factos foram praticados de uma forma homogénea, num período temporal próximo e como tal constituem uma continuidade daquele primeiro processo crime, pelo que recorre da sentença proferida em matéria de direito.
IX–Compulsada e analisada a matéria de facto dada como provada no processo 202/18.3PBLRS e a matéria de facto dada como provada no processo 2333/19.3T9LRS - enunciada em sede de alegações e que aqui se dá por integralmente transcrita – é manifesto que existe uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente.
X–É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade de actuação e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos de trato sucessivo num só crime.
XI–O Princípio do ne bis in idem que tem consagração constitucional no n.º 5 do art. 29º da CRP estabelece que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
XII–O Artigo 30º, n.º 2 do Código Penal estabelece que constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
XIII–O caso julgado enquanto garantia do cidadão, traduz-se na certeza de não poder voltar a ser julgado pela prática do mesmo facto.
XIV–No caso sub judice é manifesto que o Tribunal a quo na sentença proferida voltou a julgar a condenar o Arguido pelos mesmos factos, contrariando o determinado pelo artigo 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa que proíbe que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal” – Ac. TRC, de 15.09.2019, disponível in www.dgsi.pt.
XV–De acordo com o disposto no art. 152º do Código Penal, o crime de violência doméstica, pode ser praticado de modo reiterado ou não.
XVI–Só se poderia considerar autónoma a conduta do arguido se entre os factos julgados nos dois processos tivesse havido uma cisão provocada por um prolongado período de bom comportamento, após quebra de contacto com a vítima ou após a intervenção do poder punitivo público, o que não se verificou no presente caso.
XVII–Analisadas de forma critica as sms dos presentes autos, verifica-se que as mesmas foram enviadas entre 21.03.2019 e 07.11.2019, ou seja, apenas 8 (oito) meses após o último facto analisado no processo 202/18.3PBLRS em que o Arguido foi condenado.
XVIII–O Teor das mensagens em causa nos presentes autos é inclusivamente de caracter menos gravoso do que aquelas pelas quais o Arguido foi condenado no âmbito do processo 202/18.3PBLRS, pelo que nem sequer se pode dizer que exista uma inadequada moldura legal por excesso de gravidade do comportamento do agente ou que a conduta do arguido se tivesse prolongado por um largo período de tempo, situações em que se justificaria concluir pela necessidade de cindir a unidade das condutas do agente, o que não acontece no presente caso.
XIX–Assim, atendendo à proximidade temporal entre os factos e ao modo essencialmente homogéneo das condutas do Arguido é imperioso concluir que estamos perante uma unificação de condutas ilícitas sucessivas presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa, pelo que deve proceder a invocada excepção de caso julgado.
XX–Assim a pena aplicada ao arguido no âmbito do processo 202/18.3PBLRS deverá abrangir a conduta criminosa dos presentes autos uma vez que não existe uma interrupção temporal significativa entre ambas, pelo que a conduta objecto dos presentes autos deverá ser considerada como uma continuação daquela por cuja prática o Arguido já foi condenado no âmbito do processo 202/18.3PBLRS.
XXI–Na decorrência do exposto deve o Arguido ser condenado por um só crime de violência doméstica, na forma continuada, e manter-se apenas a condenação proferida no âmbito do processo 202/18.3PBLRS, já transitada em julgado, tanto mais que a conduta em apreço nos presentes autos, conforme já demonstrado, não é mais grave do que aquela outra.
XXII–Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os Artigos 30º, n.º 2 do Código Penal e o Artigo 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.”

O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.,

O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência. Extraiu as seguintes conclusões:
1.–A matéria de facto provada e não provada está definitivamente julgada, pelo que não pode ser alterada.
2.–Inexiste qualquer erro na apreciação da prova uma vez que o tribunal apreciou a prova de acordo com as regras de produção de prova e valorou as mesmas de acordo com o regime legal previsto no CPP e de acordo com o art.º 127.º, do mesmo diploma legal.
3.–A natureza reiterada ou duradoura do fenómeno social da Violência Doméstica não prejudica a possibilidade de autonomizar ciclos de violência, os quais, consoante os casos, poderão, ou não, integrar vários crimes de Violência Doméstica contra a mesma vítima.
4.–A recondução da conduta de um agente a um único tipo legal não se reconduz, necessariamente, a uma situação de unidade do facto punível, podendo o comportamento cindir-se numa pluralidade de sentidos de ilicitude.
5.–A unidade normativo-social pressuposta pela unidade criminosa do crime de Violência Doméstica se pode vir a afastar sempre que se verifique existir uma “cisão normativa-social do facto”.
6.–Existirá, segundo Inês Ferreira Leite tal cisão da unidade normativo-social da Violência Doméstica, nomeadamente, nas seguintes situações:
a)-Significativa modificação da forma ou
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT