Acórdão nº 2225/22.9T8ACB-D.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2024-01-09

Ano2024
Número Acordão2225/22.9T8ACB-D.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA)
Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Avelino Gonçalves

2º Adjunto: Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

A devedora AA, veio requerer que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, propondo a fixação de um rendimento líquido mensal indisponível não inferior ao total das suas despesas, no montante de 2.100 €, alegando, relativamente à sua situação socioeconómica:

- a requerente entrou num quadro clínico de burnout, estado clinico agravado em 2019 em que lhe é diagnosticada fibromialgia, acabando por desenvolver depressão; sofre ainda de problemas dentários, de pele e imunológicos;

- suporta, para além das despesas básicas relativas a alimentação, habitação (renda de casa) e vestuário, serviços de telemóvel e internet, usando um carro emprestado;

- neste momento não tem qualquer rendimento disponível, requerendo para o seu sustento, que lhe sejam considerados e deduzidos ao rendimento disponível os seguintes montantes mensais:

Despesas com Habitação/Diárias;

1. Renda de casa - €450,00; Doc. 11

2. Luz - € 25,00 (aproximadamente); Doc. 12

3. Água -€ 25,00 (aproximadamente); Doc. 13

4. Gás - € 25,00 (aproximadamente); Doc. 14

5. Tlm+net+tv - € 83,15; Doc. 15

6. Supermercado - € 300,00;

7. Vestuário

Total: € 908,15;

Despesas com Saúde mensais fixas

1.Consulta Medicina dentária - € 45,00; Doc. 16

2. Sessão fisioterapia - € 25 (1x/ semana); Doc. 17

3. Consulta psiquiatria - € 90,00 x 3; Doc. 18

4. ... - € 70,00x2; Doc. 19

5. Autoimunes - € 5,00; Doc. 20

6. ECD - € 30,00 (aproximadamente); Doc. 21

7. Farmácia - € 60,00; Doc. 22

8. Prestação de cuidados de higiene - € 120,00; Doc. 10

9. Aparelho miorelaxante - € 250,00;

Total: € 770,00;

Despesas com carro

1. IUC – € 147,21 – Doc. 23

2. Gasóleo - € 300,00 aproximadamente; Doc. 24

3. Portagens - € 75-100,00; Doc. 25

4. Seguro de veiculo - € 33,00 mensais; Doc. 26

A Requerida utiliza um veiculo emprestado, no entanto tem que suportar o gasóleo, portagens e o seguro para se deslocar diariamente de ... para ... e ....

Total: € 480,00

Despesas com Enfermagem

1. Quota da Ordem dos Enfermeiros – 9,00 €;

2. SEP – 1% do vencimento descontado no HBA;

3. Seguro AT - € 60,03 (3/3 meses);

Total: € 2158,00 aproximadamente.

Sendo enfermeira, o rendimento liquido mensal da requerida fixa-se entre os 1.000 € e os 2.000 €, dependendo do numero de horas que efetua e do numero de entidades para que trabalha.

Pelo Administrador de Insolvência foi junto o relatório a que alude o artigo 155º do CIRE.

A 27 de setembro de 2023, foi proferido Despacho inicial de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, determinando que:

Durante os três anos posteriores ao trânsito em julgado do presente despacho (designado de período da cessão), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir em cada momento, englobando todos os seus rendimentos, qualquer que seja a sua fonte, com exclusão mensal do valor equivalente a 1,5 o RMMN, considera-se cedido ao fiduciário.


*

Inconformada com tal decisão, a Insolvente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

Em face do supra-exposto, conclui-se reiterando:

1.ª Por Despacho inicial proferido em 27.09.2023, foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela então Recorrente, ora Apelante.

2ª Porém, foi igualmente determinado que a aqui Apelante, durante os três anos subsequentes ao encerramento dos presentes autos, cedesse ao Fiduciário nomeado, o rendimento disponível que venha a auferir, considerando a importância correspondente ao valor de 1,5 salário mínimo nacional, como o valor necessário para o seu sustento e despesas de saúde e profissionais, com exclusão dos subsídios de férias e de Natal.

3ª No entanto, a Apelante, tem diversas doenças crónicas, que implicam gastos de saúde diários e um pouco elevados, face ao valor que foi fixado, pelo que em termos minimamente dignos, é manifestamente insuficiente.

4ª A Sr.ª Administradora de Insolvência, no seu Relatório, elaborado nos termos do artigo 155º do CIRE, pronunciou-se favoravelmente ao pedido de exoneração do passivo restante, não se tendo pronunciado no momento quanto ao valor a ceder, como rendimento disponível, aos credores, deixando essa determinação para um momento posterior.

5ª Não foi, no entanto, consultada a Sr.ª Administradora de Insolvência, pelo Tribunal a quo para os efeitos de fixação do valor considerado para o caso concreto, a ceder aos credores.

6ª Nenhum credor manifestou a sua oposição ao pedido de exoneração do passivo restante, nem às despesas arroladas pela Apelante e respetivos documentos comprovativos.

7ª Fixou, assim, o Tribunal a quo o montante de € 1.140,00, (1,5) valor do atual salário mínimo nacional, para a Apelante pagar as suas despesas de saúde, profissionais e ainda do seu dia-a-dia, durante o período da cessão.

8ª A Apelante tem despesas mensais de € 2.100,00, tidas com renda de casa, alimentação, alimentação, eletricidade, água, luz, gás, saúde, farmácia, combustível, despesas com a profissão, todas documentadas e que não foram objeto de oposição/impugnação por parte dos credores e considerado como facto provado em sentença de declaração de insolvência.

9ª A Apelante, indicou como valor mensal para despesa com alimentação, € 300,00 para a sua alimentação, que é por si só um valor já bastante diminuto, pois constitui em alguns meses a um valor inferior ao € 10,00 diários.

10ª O mesmo acontece com o combustível para o seu veiculo € 300,00, considerando que a Apelante reside me ... e Trabalha em ....

11ª Poder-se-ia questionar porque não reside em ..., os imóveis para arrendamento são bem mais caros.

12ª Também se pode perguntar, porque não recorre aos transportes públicos, ora considerando que a Apelante é enfermeira e faz turnos não é muito fácil, acrescendo ainda o facto de em termos físicos ter dias em que a sua mobilidade é afetada, pela fibromialgia.

13ª No entanto, o que a realmente a preocupa, face ao valor que lhe foi fixado, é o facto de não poder dar continuidade os cuidados de saúde de que necessita, conforme relatórios médicos juntos.

14ª Veja-se só a titulo de exemplo, a Apelante tem que ter a prestação de cuidados de higiene, pois em alguns dias da semana, devido à patologia da fibromialgia, que não consegue simplesmente assegurar sozinha os seus cuidados de higiene, implicando o pagamento de uma prestação de serviços de € 120,00, para que alguém se desloque a sua casa e lhe dê banho e a vista, sendo este um dos factos que a Apelante em termos emocionais não consegue ultrapassar, tem 35 anos e vê-se nesta situação, sendo a consulta de psiquiatria uma necessidade para aquela.

15ª Ora, com o valor que acaba de ser fixado a Apelante não poderá manter este cuidado, entre outros, porém também não tem a quem recorrer para lhe assegurar esta ajuda.

16ª O seu tratamento para a depressão, também ficará em risco, pois a verdade é que a mesma deixa de ter possibilidades económicas para efetuar as consultas de psiquiatria.

17ª Salvo o devido respeito, que é muito, € 450 de renda de casa, € 300,00 de alimentação e € 300,00 para as deslocações, temos € 1050, sobrando assim € 90,00, que é uma quantia manifestamente insuficiente para prover às restantes necessidades, nomeadamente de saúde, não permitindo sequer dar continuidade aos seus tratamentos, pagar água, luz, gás, portagens e até despesas com a sua profissão, necessárias a um sustento minimamente digno.

18ª - No caso presente, apesar de ser um agregado familiar composto só pela Apelante, não podem ser aplicados os critérios como se fosse uma só pessoa.

19ª Atendendo aos documentos juntos aos autos, deveria o Tribunal a quo ter considerado os valores constantes nesses documentos e que resultaria uma decisão diferente àquela que veio a ser proferida.

20ª Ora, parece-nos, salvo o devido respeito, que o Tribunal a quo em nada teve em conta o alegado pela Apelante.

21ª A Decisão que fixou a quantia mensal de € 1.140,00 (1,5 do atual salário mínimo mensal), como montante destinado ao sustento da Apelante e dos seus cuidados de saúde e profissionais, viola o regime excecional previsto nas sublinhas i) e ii) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239º do CIRE.

22ª Centrando-nos na aliena i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239º do CIRE, refere-se ao “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, o que traduz na sua génese uma salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal, que se sobrepões aos direitos de ressarcimento dos credores.

23ª Resulta do preambulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, o espirito da conjugação do principio fundamental do ressarcimento dos credores com atribuição aos devedores singulares, declarados insolvente, a possibilidade de se libertarem de algumas das suas dividas e assim permitir a sua reabilitação económica.

24ª Com esta Decisão do Tribunal a quo, a Apelante não terá possibilidade dessa “reabilitação económica”, pois a nova oportunidade que lhe é possibilitada com o processo de insolvência e a exoneração do passivo restante, é colocada em causa quando não é garantido ao Apelante o seu sustento e os cuidados de saúde, minimamente digno para viver.

25ª Para tanto não se pode, desde logo, deixar de atentar que o mesmo tem subjacente o principio constitucional da dignidade pessoa humana, que embora referido no art.º 1º da CRP como constituindo a base da República Portuguesa é, na realidade um «vector axiológico estrutural da própria Constituição» (Ac do TC nº 28/2007, de 17/0172007, consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 20070028.html), na medida em que reconhece a pessoa humana como um verdadeiro princípio regulativo primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto da ‘validade’ das respetivas ‘normas

26ª Uma vez que o vetor fundamental da norma é o da dignidade...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT