Acórdão nº 20852/22.2T8LSB.L1-2 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-01-12

Data de Julgamento12 Janeiro 2023
Ano2023
Número Acordão20852/22.2T8LSB.L1-2
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
No presente procedimento cautelar de arrolamento, em que é Requerente D… e são Requeridas RBM GLOBAL INVESTMENTS, LDA., e LSKGLOBAL, LDA., a Requerente veio pedir que seja decretado o arrolamento da fração autónoma, destinada a habitação, individualizada pela letra “E”, que constitui o primeiro andar A, piso 2, com os lugares de parqueamento n.ºs 20 e 21 e a arrecadação n.º 17, no piso -3, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Lote 2.02.06, situado…concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de …, inscrito na matriz da freguesia ….
Como fundamento do seu pedido alegou, em síntese, que vive naquela fração autónoma desde 01.05.2008, o que sucedeu em união de facto com J … até 23.07.2022, data em que o mesmo faleceu.
Alegou também que o referido imóvel foi adquirido durante a constância da união de facto, tendo sido registado apenas em nome de J…, o qual, em 24.05.2022, vendeu tal imóvel às Requeridas, cujo objeto social é a aquisição de imóveis para revenda, temendo a Requerente que as Requeridas se preparem para revender o mencionado imóvel.
Na sua petição inicial a Requerente refere ainda que o requerido arrolamento é «preparatório à propositura do (…) processo para exercício do direito de preferência, caso as sociedades requeridas (…) venham a outorgar escritura de transmissão do imóvel (…)».
As Requeridas foram citadas, tendo além do mais alegado que a Requerida não tem o direito de preferência que invoca, quer por J … ter falecido no estado de casado, quer por o imóvel em causa já não pertencer ao mesmo à data do seu óbito.
Referiram também que não foram invocados factos dos quais se possa concluir pelo fundado receio de extravio do imóvel.
Nestes termos, as Requeridas concluíram pela improcedência do pedido.
Notificada da oposição, a Requerente alegou que o J … faleceu no estado de divorciado e reafirmou a titularidade do referido direito de preferência, termos em que concluiu pela improcedência da oposição.
Produzida a prova, o Juízo Central Cível de Lisboa julgou improcedente o presente procedimento cautelar.
Inconformada com tal decisão, dela recorreu a Requerente, apresentando as seguintes conclusões:
«A. Na prolação da Sentença, a Mª Juiz não atendeu ao teor da Certidão de Nascimento quanto: (i) à data em que foi lavrado o Assento n.º ... de 4 de Agosto do ano de 2015 e (ii) foi com base em Certidão da Missão católica de Malange de 6 de Novembro de 2013 e (iii) casou catolicamente (com B…) em 31 de Maio de 1975, conjugado com a constatação de que (iv) “(…) por sentença transitada em julgado em 16.11.1993, o divórcio por mútuo acordo entre J…
B. E, sendo assim, a invocação do estado de casado de J … é despiciendo para efeitos de ser impedimento à aplicação do Regime de União de Facto porquanto – para que justiça seja feita – o n.º 2 do artigo 978.º do CPC estipula que “Não é necessária a revisão quando (i) a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, (ii) como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.”
C. Mais, constitui “venire contra factum próprio” invocarem e pretenderem as Requeridas aproveitar da situação, argumentando quanto ao suposto «casamento», quando na escritura de compra e venda em apreço fizeram constar o estado civil do outorgante J…: divorciado!
D. Consequentemente, deve ser aditado aos factos provados:
“(º) Aquando da aquisição da Nacionalidade Portuguesa por J…, em 2015 (distintamente do que consta do Registo Civil) não era casado com B…, de acordo com o consignado em 11, por ter sido decretado o divórcio em 16.11.1993.
(º) Em 24.05.2022, J…, como vendedor, outorgou com as sociedades Requeridas, como compradoras, escritura pública de compra e venda da fracção autónoma identificada em 1., daí constando que o preço da venda foi de € 300.000,00 e o estado civil como divorciado.”
E. Todavia, se assim se não considerar, a escritura em crise seria inválida por errónea menção do estado civil do outorgante – divorciado – em detrimento do considerado pela Mª Juiz a quo casado em Portugal pelo que carecia da autorização/consentimento conjugal ex vi artigo 1684.º n.º 1 do C.C., no caso, que respeite a forma escrita (artigo 1684.º n.º 2, 262.º n.º 2 e 875.º do C.C.) pois nenhuma dessas exigências legais foram observadas no caso concreto.
F. O que implicaria extrair a consequência legal da invalidade do ato, de acordo com o disposto nos artigos 1682.º-A n.º 1 al. a), 1684.º n.º 1 e n.º 2, 262.º n.º 2, 75.º e 1687.º n.º 1 do C.C.
G. Acresce que está comprovado que as Requeridas são sociedades comerciais que se dedicam à aquisição de imóveis para revenda, pelo que estando em causa um bem transacionável de imediato, até por imposição do regime fiscal de aquisição «isenção de IMT na condição da sua revenda em 3 anos», atento o objeto social das Sociedades adquirentes, a localização do imóvel e o preço «desfasado da realidade» da sua aquisição a sua transmissão imediata a terceiro (ignorando o presente litígio) é, diríamos, mais do que imperativo.
H. Assim, atento o exposto nos presentes autos e a mera natureza das coisas, o “procedimento cautelar surge como meio jurídico-processual com função de evitar que se realizem actos que impeçam ou dificultem a satisfação de determinada pretensão, já tida como legítima[1], o que se consegue mediante uma incidência na esfera jurídica do demandado adequada e suficiente para produzir esse efeito[2]”.
I. Já a afirmação de que, à data da morte do companheiro da Requerente, já este tinha validamente alienado o imóvel às Requeridas, não pode ser determinada desta forma porquanto, como vimos, a escritura – inclusive no entendimento da Mª Juiz - está eivada de erro de julgamento por carecer da autorização do cônjuge – com afirmação que dela consta que o estado civil de J… é de divorciado.
J. Pelo que é manifestamente apriorístico afirmar que o direito de preferência - invocado pela Requerente - nunca se formou na sua esfera jurídica …”.
K. E, ainda, acrescenta a Mº Juiz “(…) já que sempre seria necessário que o membro falecido fosse ainda proprietário do imóvel – no caso de um direito real de habitação, também consagrado no preceito, «a ocorrência do óbito do membro da união de facto proprietário da casa de morada de família é, só por si, facto constitutivo…”.
L. Ora, o regime que regula os direitos que assistem ao sujeito que sobreviva a União de Facto previsto na Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, que deu nova redação à Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio “(…) no caso de a união de facto dispõe no n.º 9 do artigo 5.º que “O membro sobrevivo tem direito de preferência em caso de alienação do imóvel, durante o tempo em que o habitar a qualquer título.”
M. Não se deve olvidar o prazo em que os dois membros da união de facto habitaram o Imóvel, no caso “(…) desde Maio de 2008, com os seus 3 filhos…” dado como provado na sentença recorrida nos Ponto 1 e 4.
N. Nesta conformidade, a Recorrente deve beneficiar da aplicação do espírito que presidiu à instituição do regime e não a uma aplicação cega da letra da lei que pretendeu garantir, por via do atual regime da união de facto, uma solução justa e equitativa, tendo em atenção as relações criadas, para as uniões de facto duradouras, como sucedeu no caso em apreço.
O. A situação em que a Recorrente viveu (mais de 14 anos) permite-lhe criar a firme convicção e a legítima expectativa de que tem direito à casa de morada de família, na circunstância como as dos autos, atento a que o perecimento do outro membro da União se deu mero mês após a escritura e em que aquele interveio em circunstâncias não claramente, ainda, apuradas quanto ao montante fixado e o destino do dinheiro resultante da alienação: neste sentido veja-se a menção a divorciado quando a Recorrida vem defender e mostrar ter conhecimento do estado de casado do outorgante J ….
P. Ora, o princípio da confiança visa a previsibilidade das soluções, a proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica o qual é violado quando haja uma afetação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 287/90, 303/90, 625/98, 634/98 e 186/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Q. A solução de Direito vertida na sentença recorrida viola, salvo o devido respeito por entendimento diverso, o princípio da legalidade.
R. Como se pode entender não existir uma situação de flagrante necessidade de “habitação própria e permanente, para a Requerente e filhos (gerados no seio da união de facto), quando os móveis foram adquiridos na constância da União (por ambos) e é a Requerente, que não tem outro local onde possa habitar, paga as contas das despesas da casa?”
S. Ou seja, para além do erro de julgamento sobre os pressupostos de facto que apontam para que uma decisão com racionalidade económica (atente-se a que a venda imediata do imóvel a terceiro está na génese e é pressuposto da sua aquisição pelas requeridas) impõe solução diametralmente oposta à da Sentença pois, esta, deixa sem qualquer proteção jurídica a Requerente face a ulterior adquirente de boa-fé.
T. Foi, também, violado o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º e o n.º 1 do artigo 65.º da Constituição, pois é inadmissível que um procedimento seja decidido ao arrepio de assegurar o mais elementar direito à habitação da Requerente e seu agregado familiar.
U. A violação do princípio da tutela judicial efetiva é manifestamente injusta, pois tem como consequência a denegação do direito de ação «do direito» de preferência.
V. O Tribunal violou garantias constitucionais da requerente, alheando-se da condução e tramitação dos autos em consonância com
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