Acórdão nº 1952/20.0T8FNC.L1-7 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-11-08

Ano2022
Número Acordão1952/20.0T8FNC.L1-7
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório:
A e mulher, B, e C, vieram propor, em 18.5.2020, contra D e mulher, E, e o Município do Funchal, ação popular pedindo:
a) Se condenem os 1ºs RR. “a desobstruir o caminho público e repor a situação anterior à colocação do primeiro portão chapeado, com fechadura, do segundo portão gradeado, com fechadura, e do terceiro portão automatizado, com fechadura, designadamente retirar estes e quaisquer outros obstáculos, equipamentos ou infraestruturas que aí se encontrem, bem como a reconstruir tudo o que eventualmente, entretanto, tenham destruído do dito caminho público, por forma a repor a dominialidade pública do caminho e seja novamente usado pela comunidade geral”; bem como
b) Se condenem os 1ºs RR. “a pagar a quantia de € 100,00 (cem euros), a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829-A do Código Civil, por cada dia que decorra, após o trânsito em julgado da sentença, sem que se mostre cumprido o que se estabelece no número anterior”; e
c) Se condene o R. Município “a garantir que os 1°s RR. procedam à desobstrução do caminho, retirando um primeiro portão chapeado, com fechadura, um segundo portão gradeado, com fechadura, e um terceiro portão automatizado, bem como quaisquer outros obstáculos, equipamentos ou infraestruturas que aí se encontrem, e ainda a reconstruir tudo o que eventualmente, entretanto, tenham destruído do dito caminho público, no dito prazo máximo de 15 (quinze) dias após o trânsito em julgado, sob pena de o fazer, em substituição dos 1ºs RR.”
Alegam, para tanto e em breve síntese, que os 1ºs RR., tendo adquirido em 31.10.2017 um imóvel em frente do imóvel que é propriedade dos AA., na freguesia de ..., concelho do Funchal, apropriaram-se de um caminho público pedonal ali existente com início na ... e termo no ..., que serve os AA. e as habitações vizinhas, bem como quaisquer transeuntes que o utilizam desde tempos imemoriais, por ser o mais curto e o menos íngreme entre a Estrada ... e o Caminho de ....
Seguindo os autos sob a forma de processo comum (cfr. despacho de 14.9.2020), e citados os demandados, apenas os 1ºs RR. apresentaram contestação, a qual foi mandada desentranhar e devolvida aos mesmos (cfr. despacho de 7.12.2021).
Por despacho de 24.1.2022, foram considerados confessados os factos articulados pelos AA. e, cumprido o disposto no nº 2 do art. 567 do C.P.C., os 1ºs RR. vieram juntar alegações escritas.
Em 14.3.2022, foi proferida sentença que, discorrendo sobre a natureza da ação popular e a constituição do domínio público, decidiu nos seguintes termos: “(…) O réu Município do Funchal vem esclarecer que apenas o ... se encontra em regime de dominialidade (caminho público), esclarecendo que o mesmo tem início na rua da Escola Secundária do ... e términus “sem saída” (terminando assim na ...), ou seja, os factos alegados pelos AA. quanto à existência de domininialidade pública em toda a extensão do dito Beco (o qual terminaria, na alegação dos AA. ao Caminho de ..., passando pela ...) não encontra acolhimento com o teor do documento junto pelos próprios AA. e elaborado pela Câmara Municipal do Funchal, ou seja, apenas parte do caminho conforme alegado pelos AA. é público, e ele é aquele que configura o “...”, com entrada mas sem saída, pelo que, parte do trajeto que os AA. alegam como público não o é, pois que não consta facto ou documento que permita concluir que o mesmo tenha sido objeto de apropriação ou produzido por uma pessoa coletiva de direito público, ou que sobre ela uma pessoa coletiva de direito público haja praticado atos de administração, jurisdição ou conservação, em toda a sua extensão, visando a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância. Toda a alegação dos AA. vai no sentido de que o “caminho” em causa servirá para “encurtar distâncias”, ou seja, o que temos é a existência de um caminho de domínio público, que nem AA. nem RR. colocam em causa, e que se consubstancia no “...” sendo que, no fim deste, na ... até ao Caminho de ... o que temos é um atravessadouro (para encurtar caminhos o que favorece os AA. por serem pessoas idosas) não visando a satisfação de interesses coletivos de certo grau (relevantes) e não um Caminho Público com a extensão definida na Lei Lei n.° 83/95 de 31 de Agosto (Lei de Ação Popular).
Pelo exposto, das alegações e dos documentos juntos aos autos não é possível concluir pela existência de um caminho público conforme alegado pelos AA., ao qual possa ser atribuída relevância e utilização pública, para além do que resulta provado quanto ao ... na forma e extensão resultantes da declaração emitida pela Câmara Municipal do Funchal o qual não foi posto em causa pelos RR.
Procederá assim, totalmente, a presente ação.
(…).
III. Dispositivo
Pelo exposto, julgo a ação totalmente improcedente, por não provada, e em consequência decido absolver os RR. dos pedidos contra eles formulados pelos AA..
Fixo à ação o valor de € 30.000,01 (trinta mil euros com um cêntimo).
Custas, solidariamente, a cargo dos AA., conforme decidido (cfr. art. 607.°do CPC).(…).”
Inconformados, interpuseram recurso os AA., apresentando as respetivas alegações que culminam com as conclusões a seguir transcritas:

A) por o Tribunal a quo ter julgado “provados por confissão todos os factos alegados pelos AA. na sua petição inicial os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos”, deveria ter, obrigatória e necessariamente, julgado totalmente procedente a ação.
B) Os ora apelantes alegaram, na sua petição inicial, todos os factos constitutivos dos pedidos formulados, designadamente da ação popular civil, estando os mesmos sustentados em prova documental.
C) Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto provada constante do supra articulado 8..
D) Em face da matéria de facto dada como provada, por sentença, o caminho sempre foi público e sempre esteve no uso directo e imediato do público.
E) Tal caminho nunca foi circunscrito a um círculo determinado de pessoas e sempre foi caracterizado pela indiscriminação.
F) O dito caminho sempre serviu todas as pessoas do lugar de ..., Funchal.
G) O uso do caminho, como demonstrado e provado, nunca foi circunscrito e sempre prosseguiu a satisfação de interesses colectivos ou comunitários relevantes, nomeadamente o acesso rápido a cuidados de saúde.
H) O caminho, que passa pela ... e o …, de uso imemorial, integra o domínio público.
I) Por conseguinte, há, de facto, na sentença uma contradição insanável entre a matéria de facto de facto provada, a fundamentação e a decisão.
J) Não consta da factualidade dada como provada que parte do trajecto não é público e que não visasse a satisfação de interesses colectivos;
K) Também não consta da factualidade dada como provada que “o “caminho” em causa servirá para “encurtar distâncias”, ou que se trate de “atravessadouro”.
L) Mais relevante, ainda, é a própria sentença, no último parágrafo da fundamentação de facto, declarar expressamente que “Procederá assim, totalmente, a presente ação (negrito é nosso).
M) Deste modo, jamais a presente ação poderia improceder.
N) Face ao exposto, com o salvo devido respeito, a sentença é nula, nos termos da al. c) do n.° 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, devendo como tal ser declarada e substituída por outra que condene nos pedidos constantes da petição inicial e identificados no supra articulado 5.”
Pedem que seja declarada nula a sentença e substituída por outra que julgue a ação procedente e condene os RR. nos pedidos.
Em contra-alegações, vieram os 1º RR. pugnar pela manutenção do julgado, concluindo nos seguintes termos:

1. Os Réus, ora Apelados, concordam em absoluto, com a improcedência total da acção interposta pelos Autores, ora Apelantes;
2. Pelo facto, de não existir um caminho público entre a ... e a o Caminho da ...;
3. Na verdade, o ... tem o seu términus na ...;
4. Não existindo, por esse facto, qualquer caminho público na ..., e por conseguinte, no prédio propriedade dos Réus ora apelados,
5. Conforme, aliás, prova documental irrefutável, declaração do Município do Funchal, que declara a inexistência de qualquer caminho público na ...;
6. Assim sendo, não se poderá alegar que se vislumbra, na Douta sentença do Tribunal a quo, uma qualquer contradição insanável entre a decisão e a sua fundamentação, incluindo a matéria provada;
7. Até porque a matéria de facto provada, pela revelia dos Réus, é afastada pela referida prova documental;
8. O estatuído na declaração camarária afasta, aliás, pela sua imperatividade, qualquer alegação dos Autores ou confissão dos Réus;
9. Não se vislumbrando, na Douta sentença do Tribunal a quo, qualquer contradição insanável entre a decisão e a sua fundamentação, incluindo a matéria provada;
10. Todo o espírito da fundamentação da sentença, e a sua conclusão vai de encontro à improcedência total da acção;
11.Que, aliás, se conclui através de uma leitura e uma interpretação atenta;
12. E o facto de no último parágrafo da fundamentação de facto se declarar "Procederá assim, totalmente a presente acção, só poderá se concluir, se tratar de um lapso manifesto, contrário à fundamentação e à conclusão da Douta sentença;
13. Até porque o espírito da sentença é a improcedência da acção e não a sua procedência;
14. Concluindo-se, por isso, que outra interpretação não se poderá efectuar, que não seja a improcedência total da acção requerida pelos Autores;
15. Até porque, a douta decisão não contraria a matéria de facto provada, refutada por uma prova documental, a declaração camarária.”
Em despacho de 21.7.2022, procedeu-se à retificação da sentença, ao abrigo dos arts. 613 e 614 do C.P.C., determinando-se que “onde se lê «Procederá assim, totalmente, a presente ação» passar-se-á a ler «Improcederá assim, totalmente, a presente ação» (sublinhado nosso).”
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