Acórdão nº 19030/22.5T8SNT-B.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-05-24

Ano2023
Número Acordão19030/22.5T8SNT-B.L1-1
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Dado que a questão objeto do recurso, que não foi objeto de oposição, se mostra simples e objeto de jurisprudência harmonizada nesta secção, declaro que esta será julgada singular e sumariamente (art.ºs 652º nº 1, al. c) e 656º, ambos do CPC, aplicáveis ex vi art.º 17º nº1 do CIRE).
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1. Relatório

APM, apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante, alegando encontrar-se em situação de insolvência atual.

A insolvência da requerente foi declarada por sentença de 10/11/2022.

Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório.

O Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos relatório, nos termos previstos no art.º 155º do CIRE, no qual se pronunciou pelo encerramento do processo atenta a inexistência de património apreensível, nos termos do disposto nos art.ºs 230.º, n.º 1, alínea d) e 232.º, n.º 1 do CIRE e, relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, emitiu parecer no sentido de que o requerimento deve ser deferido.

O credor Banco …, SA declarou opor-se à concessão da exoneração do passivo restante nos termos das alíneas d) e e) do nº1 do art.º 238º do CIRE.

Por decisão do tribunal de 09/03/2023, foi decidido deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, fixando-se o rendimento da insolvente, tido por minimamente digno ao sustento da mesma, no montante correspondente a um salário mínimo nacional doze meses por ano, não estando abrangidos eventuais subsídios de férias e de Natal, que integrarão o rendimento disponível, desde que, somados com os outros rendimentos excedam o referido montante.

Na mesma data o tribunal declarou o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa, cfr. art.ºs 230.º n.º 1 e) e 232.º n.º 1 do CIRE.

Inconformada com a parte da decisão respeitante à fixação do montante do rendimento disponível, apelou a insolvente pedindo seja revogada a sentença recorrida e substituída por uma outra, que fixe como rendimento excluído da cessão o montante correspondente a 1,5 SMN (um salário mínimo nacional e meio), estabelecendo ainda que o apuramento do montante disponível deverá ser feito anualmente, em função do rendimento médio auferido pela Insolvente, e apresentando as seguintes conclusões:

“A) Por douto despacho de fls., foi decidido que o rendimento indisponível corresponde a 1 (um) salário mínimo mensal, sendo que é de tal decisão que recorre a Apelante.

B) A requerente acredita que, atento o seu agregado familiar (que é composto pela insolvente e por um filho dependente) deverá ser fixado, como excluído da cessão, o montante equivalente a 1,5 SMN (um salário mínimo mensal acrescido de metade), dado que o valor fixado é insuficiente para acautelar o sustento minimamente digno da Insolvente e do filho, atenta as despesas próprias de um agregado familiar com esta composição, devendo o cálculo do rendimento a entregar pela aqui devedora ser efectuado com base no rendimento médio anual.

C) Nesse sentido o Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04/05/2010, proc. 4989/09.6TBSXL-B.L1-1, (Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES), consultado em www.dgsi.pt:

“Porém, uma vez que no art.º 239º nº 3 b) i) do CIRE se alude ao sustento minimamente digno, não só do devedor mas também do seu agregado familiar, apelando e fazendo eco da denominada “cláusula do razoável” e do “princípio da proibição do excesso”(...) deve considerar-se excluído do rendimento disponível o montante tido por razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, cujo apuramento deverá envolver sempre um juízo e ponderação casuística do juiz relativamente ao montante a fixar.”

D) Verificando-se ainda, e de acordo com jurisprudência mais recente: “(…) II - Do facto de o salário mínimo mensal nacional constituir um critério referência para fixação do montante necessário ao sustento minimamente condigno dos exonerandos, daí não decorre que o legislador pretendeu e previu o cálculo ou apuramento dos rendimentos disponíveis vinculado a uma cadência mensal, por referência estanque aos rendimentos auferidos em cada mês de cada ano do período de cessão, tando mais que, conforme art.º 240º, nº 2 do CIRE, é anual a periodicidade para a elaboração e apresentação do relatório do período de cessão pelo Fiduciário. III – Perante a irregularidade dos montantes mensais dos rendimentos auferidos pelos exonerandos, com inclusão de meses com rendimentos de montante inferior ao judicialmente excluído da cessão de rendimentos, só através do apuramento dos rendimentos objeto de cessão por referência aos rendimentos anualmente auferidos é possível garantir aos devedores disporem, em cada mês de cada ano do período de cessão e por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, de rendimentos de montante não inferior, ou de valor o mais aproximado possível, ao rendimento mensal indisponível fixado. (…).- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2020, proc. 6074/13.7TBVFX-L1-1, (Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO), in www.dgsi.pt.

E) Entendo-se ainda, de acordo com a jurisprudência dominante, que se deverá recorrer à denominada escala de Oxford – escala da OCDE criada em 1982, para determinar a capitação dos rendimentos de um agregado familiar, nos seguintes termos: “(…) o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0.7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/03/2013, proc. 1254/12.5TBLRA-F.C1, in www.dgsi.pt.

F) Pelo exposto, entende-se que o Tribunal posto em crise decidiu erradamente quanto ao montante e modo de cálculo do rendimento disponível a entregar pela Insolvente.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho de 17/04/2023 (ref.ª 143825421).

Cumpre apreciar.

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2. Objeto do recurso

Como resulta do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.

Consideradas as conclusões acima transcritas a única questão a decidir é a da determinação do montante relativo ao sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar, para os efeitos da exoneração do passivo restante.

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3. Fundamentos de facto:

O tribunal recorrido deu como assentes os seguintes factos:

“1. A insolvente nasceu em 23-10-1992 e é solteira.

2. O seu agregado familiar é composto por si e pelo seu filho, FAM, nascido em 15-10-2015.

3. O filho da insolvente está confiado à sua guarda, contribuindo o pai do menor com a quantia mensal de €200,00, a título de alimentos para o mesmo.

4. A insolvente reside com o filho em casa de familiares.

5. Trabalha por conta de C&C, Lda., como Cortadora de Carnes (Aprendiz), auferindo o vencimento ilíquido correspondente ao salário mínimo nacional, acrescido de subsídio de alimentação.

6. Não tem antecedentes criminais.

7. Apresentou-se à insolvência em 07-11-2022.

8. O seu passivo ascende a €41.191,75.

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Com relevo para a decisão do presente recurso, mostram-se ainda assentes, com base nos termos dos autos, nos documentos juntos ao processo e na ausência de impugnação por parte dos interessados, os seguintes factos:

9. Foi proferida em 09/03/2023, sentença de verificação e graduação de créditos tendo sido verificados créditos reclamados por quatro credores, todos créditos comuns no valor global de € 41.191,75.

10. O processo foi encerrado sem que tenha ocorrido a apreensão de qualquer bem.

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4. Apreciação do mérito do recurso:

A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.

Nos termos do disposto no art.º 235.º do CIRE: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»

“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[1]

É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.

Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art.º 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[2]

Essa tensão entre...

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