Acórdão nº 18945/22.5T8SNT.L1-2 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2024-02-08

Data de Julgamento08 Fevereiro 2024
Ano2024
Número Acordão18945/22.5T8SNT.L1-2
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
«A», filha de «R», relativamente à qual intentou a presente ação de acompanhamento de maior, com processo especial, notificada da sentença proferida em 21 de novembro de 2023, que julgou a ação improcedente, e com essa sentença não se conformando, interpôs o presente recurso.

A requerente intentou a ação alegando, em síntese, que:
- A beneficiária/requerida, nascida em …1930, é mãe da requerente;
- A requerente tem uma irmã mais nova, «B», com quem a beneficiária reside;
- A requerida está desorientada no tempo e no espaço, não consegue andar na rua sozinha, não consegue cozinhar uma refeição, não tem discernimento para tomar a sua medicação, não se veste sozinha, não conhece o valor do dinheiro, tem dificuldade em manter, com sentido, uma conversa simples, não tem, enfim, capacidade de gerir a sua vida, sendo que quem o faz por si é a filha mais nova, sem qualquer controlo;
- A requerida não tem, como tal e também, capacidade para exercer o cargo de cabeça-de-casal da herança indivisa por óbito de seu marido;
- A irmã mais nova da requerente tem impedido a requerente de visitar a mãe, de a acompanhar aos médicos, de se inteirar do seu estado de saúde, enfim, de dela se ocupar.
Termina pedindo que se a requerida permaneça ao cuidado de ambas as filhas, residindo alternadamente com cada uma delas em períodos de 15 dias, que as consultas sejam acompanhadas por ambas, que a requerida seja inibida de tomar decisões sobre o seu património sem o suprimento do tribunal, que seja exonerada da obrigatoriedade de ser cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do marido, e que ambas as filhas sejam nomeadas suas tutoras.
Notificada para se pronunciar sobre a demanda, a irmã mais nova opôs-se à pretensão da requerente.
A requerida contestou, impugnando os factos e impetrando pela improcedência da ação.

Realizada avaliação neuropsicológica da requerida, consta do respetivo relatório: «foi possível apurar que o funcionamento cognitivo da examinada revela um Quociente de Inteligência Global compatível com uma Inteligência “Normal Reduzida”, quando comparada com outros sujeitos da sua faixa etária. Apesar de não terem sido apurados sinais de deterioração mental, apuraram-se indícios de deterioração mnésica, em grau ligeiro, sendo necessário considerar este resultado com prudência, uma vez que questões mnésicas que exigem o uso da visão (e.g., teste de reprodução visual) não foram contempladas derivado da situação particular da examinada. Desta forma, constata-se mantida alguma capacidade de raciocínio verbal (i.e., compreensão, conceptualização e abstração) por parte da examinada a par de uma certa capacidade de juízo moral. Contudo, a par da acentuada diminuição da capacidade visual da examinada, apuram-se dificuldades ao nível do seu desenvolvimento e conhecimento geral e fragilidades no que respeita aos seus processos atencionais, tendo-se, igualmente, denotado um certo grau de impulsividade» (conclusões do relatório de 10/07/2023).

O exame pericial psiquiátrico concluiu não existir (nem nas peças processuais, nem nos elementos clínicos) referência a doença psiquiátrica relevante, que «da avaliação efetuada em conjugação com o resultado de avaliação psicológica, não se verifica qualquer impacto funcional que ultrapasse as características próprias de pessoa com a diferenciação académica, cultural e etária da examinanda. Aliás, as dificuldades apresentam-se essencialmente como sendo, sensoriais i.e., hipovisão e hipoacusia que na verdade, não são graves e não comprometem sequer a realização da presente avaliação médico-legal. Assim, no caso concreto, admite-se existir apenas alguma dificuldade do raciocínio complexo decorrente de eventual deterioração própria da idade. No entanto, esta dificuldade não é suficiente para configurar relevante perturbação cognitiva, conseguindo a requerida responder e colaborar na entrevista percebendo a sua situação e dificuldades pragmáticas. (…)
Deverá manter seguimento médico regular, que a examinanda aceita e está consciente, na especialidade de medicina geral, neurologia e cardiologia.
O regime do maior acompanhado trata essencialmente de suprir ou reduzir a capacidade de exercício de um determinado individuo, sendo que a presunção da manutenção da capacidade jurídica constitui a regra geral e a exceção será, pois, a inexistência da incapacidade. O recurso adaptado – que cremos existir - às normas que regulam a incapacidade por menoridade, implica na nossa modesta opinião que o acompanhamento de maiores se exerça de modo a que seja dado espaço de realização à capacidade concreta existente no/a Requerido/a. Igualmente, constituindo este instituto uma restrição da liberdade individual, as situações previstas devem considerar-se taxativas e insuscetíveis de aplicação analógica, sendo que na impossibilidade de prova objetiva de incapacidade, deve presumir-se a capacitação.
Adicionalmente, deste caso em particular, extrai-se, salvo melhor opinião e devido respeito, que a manutenção dos direitos de cidadania da beneficiária, parece ser a solução que melhor serve à estabilidade da requerida, mesmo em termos de saúde mental, ou seja, a que para si é menos geradora de stress desestabilizador e potencialmente catalisador de incapacitação.
Pelas razões atrás aduzidas, estamos em crer que, salvo melhor opinião e devido respeito, a Decisão a ser tomada deverá ir no sentido da não procedência da Acão» (conclusões do relatório de 31/10/2023).

A requerida foi ouvida em juízo.

O Ministério Público pronunciou-se pela improcedência da ação, por ilegitimidade da requerente para a sua propositura (considerando a falta de autorização da requerida para o efeito e a capacidade desta para a dar).

Em 21/11/2023 foi proferida sentença que absolveu a requerida da instância por ilegitimidade da requerente para a propositura da ação.

A requerente não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1) A presente sentença incorre num vício de nulidade da sentença, nos termos e para os efeitos do artigo 615.º n. 1, alínea c) e d), do Código de Processo Civil, que ora se suscita.
2) Uma vez que a sentença proferida, não se pronuncia sobre os relatórios juntos aos autos, quer do Centro de Saúde de São Marcos, quer do Hospital Egas Moniz, sobre o estado de saúde da requerida.
3) Não fazendo análise crítica e fundamentada sobre essa matéria alegada nos referidos relatórios, de extrema relevância para a presente decisão.
4) Também não se pronunciou nem nos autos, nem agora na Douta Sentença, e como tal, nem ordenou a realização de exame neuropsicológico, fundamental para aferir o verdadeiro estado de saúde da requerida, para tomar decisões sobre a sua vida, apesar de peticionado pela Requerente, e recomendado pelo Hospital Egas Moniz, no seu relatório.
5) Não se pronunciou o Douto Tribunal, sobre o pedido de acompanhamento das técnicas da segurança social a requerida em ambiente familiar a fim de elaborarem relatório sobre o seu estado de saúde, bem como da sua capacidade de independência para gerir o básico do seu dia a dia.
6) Não individualizou os factos provados ou não provados, bem como os seus fundamentos e direito aplicável.
7) Tornando esta sentença incoerente, omissa e imprecisa nos termos do art.º 615º, nº 1, al. b) do CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
8) Fulcral em toda a sentença é o dever de fundamentação das decisões, o qual tem consagração constitucional (art.º 205º, nº 1 da CRP) e está também previsto no art.º 154º do CPC.
9) O Douto Tribunal a quo baseou a sua sentença única e exclusivamente no relatório do Instituto de Medicina Legal, que foi feito com base em escalas interpretativas, que não comtemplam exames médicos, nem tão pouco preencheu todos os quesitos necessários para a tomada da presente decisão.
10) Sem prescindirmos que o referido relatório, tem a participação da filha mais nova da requerida, interveniente no presente processo, e a quem esta sentença beneficia, estando totalmente comprometido o referido relatório por imparcialidade que lhe é devido.
11) Igualmente é omissa a Douta Sentença, da qual se recorre, no que respeita ao peticionado ao longo do processo, pela requerente, de retomar os contactos com a sua progenitora mãe, atento que a sua irmã mais nova, os proibi-o por completo, nem prestando qualquer informação sobre o estado de saúde da mesma, mesmo quando solicitado.
12) A presente impugnação é feita nos termos do disposto no artigo 640º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil.
13) A presente sentença viola os direitos fundamentais da ora requerente nos artigos artigo, 26º n.º 1, 36º n. º6, da Constituição da República Portuguesa.»

A requerida e o Ministério Público responderam ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) A sentença enferma de nulidade?
b) A matéria de facto deve ser alterada?
c) A sentença deve ser revogada?

II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos:
1. A beneficiária não apresenta qualquer impacto funcional que ultrapasse as características próprias de pessoa com a diferenciação académica, cultural e etária da mesma.
2. O funcionamento cognitivo da beneficiária revela um Quociente de Inteligência Global compatível com uma Inteligência “Normal Reduzida”, quando comparada
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