Acórdão nº 189/20.2GAOHP-B.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 20-03-2024

Data de Julgamento20 Março 2024
Ano2024
Número Acordão189/20.2GAOHP-B.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL))
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I - RELATÓRIO

1 - Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital, foi proferido o seguinte despacho:

«1.1. O arguido veio requerer a transcrição da audiência de julgamento em requerimento de 03-07-2023 (cf. ref.ª 8189305), alegando que pretende interpor recurso e proceder à impugnação da matéria de facto.

1.2. Aberta vista, a Digna Magistrada do Ministério Público veio promover o indeferimento por falta de fundamento legal (cf. 05-07-2023, ref.ª 91756625).

Cumpre apreciar e decidir.


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1.3. Dispõe o artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na sua versão actual e em vigor, que: «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.» [sublinhado nosso]

1.4. Advém desta norma que a motivação do recurso quanto à matéria de facto apenas exige a identificação das concretas passagens da gravação da audiência de julgamento que funda a impugnação.

Daqui resulta um regime distinto da anterior versão do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, alterada pela Lei 48/2007 de 29-08.

Hoje, ao contrário da versão anterior a 2007, não existe o ónus de se proceder à transcrição dos meios de prova enquanto motivação à impugnação à matéria de facto e condição para a mesma ser apreciada pelo Tribunal ad quem.

Acresce que tendo sido entregue ao arguido na pessoa do seu Ilustre Defensor suporte duradouro contendo as gravações da audiência de julgamento em momento prévio ao requerimento (cf. 20-06-2023, ref.ª 91631759) e não tendo neste sido especificado quais os segmentos da gravação da audiência de julgamento cuja transcrição pretende e que motivariam a sua impugnação à matéria de facto, sempre se concluiria pela falta de fundamento legal da pretensão atento o disposto no actual n.º 4, do artigo 412.º, do Código de Processo Penal..

1.4. Assim, indefere-se por falta de fundamento legal o requerido, porquanto o acto de transcrição não é necessário para fundar a impugnação da matéria de facto em sede de recurso, bem como não cumpriu o ónus prescrito no artigo 414.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. indeferido o acto de transcrição da audiência requerida pelo arguido.

2 - Inconformado, interpôs recurso o arguido AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

«B - O presente despacho viola o nº1 da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, porquanto “O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos.”

C - O mui douto Ac. do Tribunal da Relação do Porto, Proc. 3498/08.5TBVFR-B. P1, porquanto “I- A parte que beneficia do apoio judiciário na modalidades de dispensa total, ou parcial, de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não tem que suportar os custos de certidões requisitadas pelo tribunal a outras entidades ou quando exigidas pela lei processual.”

D - Sendo as transcrições imprescindíveis para o recurso da matéria de facto, além de necessárias na consideração e liberdade procedimental e intelectual do mandatário, e se o arguido não tem meios para o fazer, então é lhe vedado esse direito.

Ao que acresce;

E - Salvo melhor entendimento, a consideração ou análise interpretativa realizada pelo Tribunal a quo do nº1 do art. 20 da nossa Constituição da República Portuguesa, na senda do perfeito acesso ao direito, é inconstitucional, que bem se deixa expressamente arguida, para e com os necessários e advindos efeitos legais, posto que nos termos do nº1 do art. 20º da CRP, “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.”

F - A interpretação do Tribunal a quo de que o arguido - que não tem meios e não as pode fazer de outra forma - não ter fundamento legal para pedir as transcrições, necessárias em sede de recurso, afigura-se inconstitucional

G - Se o arguido não tem dinheiro para realizar as transcrições, se pediu o apoio jurídico na modalidade mais ampla que podia pedir e assim lhe foi concedido, mais não pode fazer para ter acesso ao direito, senão pedir ao Tribunal, como o fez, as necessárias transcrições, caso contrário não pode condignamente e de forma viável recorrer e ter um processo justo

H - O arguido pediu a transcrição integral, de todas as sessões e o nº4 do art.414º do CPP, “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”, apenas se aplica ao recursos e não se aplica naturalmente aos requerimentos a pedir as transcrições para preparação do recurso.

I - O arguido pediu a transcrição integral, para o seu Mandatário ou rectius Defensor, poder analisar todas as falas, comparar, preparar e elaborar o recurso como entendesse, aliás permitam-nos, até se na sua liberdade profissional e intelectual o Defensor quiser apresentar todas as transcrições e depois nas conclusões do recurso apenas fazer menção e assim fazer salientar as concretas passagens ou de outra forma qualquer, com certeza terá essa liberdade funcional.

J - Tal é uma não questão – e até porque se não fosse e até pudesse ser um argumento válido, estaríamos com certeza perante uma má fé lamentável quando não se pergunta, se houvesse dúvidas, quais eram as passagens em causa – porque o Tribunal a quo simplesmente afirma que o arguido não tem esse direito, i.e. não tem o direito de pedir transcrições. (…) ».

3 – O Ministério Público, em primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento.

4 - O Ex.mo Procurador-geral Adjunto, neste Tribunal, da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, mantendo-se o despacho recorrido.

5 – Cumprido o disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A primeira questão a decidir consiste em saber se o tribunal está obrigado a proceder à transcrição da audiência para efeitos de impugnação de facto.

Conforme preceitua o artigo 99.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal, o auto respeitante ao debate instrutório e à audiência denomina-se acta e rege-se complementarmente pelas disposições legais que este Código lhe manda aplicar.

Para audiência, dispõe o artigo 363º do Código de Processo Penal:

«As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade.».

Sob a forma a que deve obedecer a documentação, rege o artigo 364º, do mesmo diploma:

«1 - A audiência de julgamento é sempre gravada através de registo áudio ou audiovisual, sob pena de nulidade, devendo ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número seguinte.

2 - Além das declarações prestadas oralmente em audiência, são objeto do registo áudio ou audiovisual as informações, os esclarecimentos, os requerimentos e as promoções, bem como as respetivas respostas, os despachos e as alegações orais.

3 - (…)

4 - A secretaria procede à transcrição de requerimentos e respetivas respostas, despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível.

5 - A transcrição é feita no prazo de cinco dias, a contar do respetivo ato; o prazo para arguir qualquer desconformidade da transcrição é de cinco dias, a contar da notificação da sua incorporação nos autos.

Por seu turno, estatui o artigo 101.º, do Código de Processo Penal (ex vi artigo 364.º, n.º 6, do Código de Processo Penal):

«1 - O funcionário referido no n.º 1 do artigo anterior pode redigir o auto utilizando os meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como, nos casos legalmente previstos, proceder à gravação áudio ou audiovisual da tomada de declarações e decisões verbalmente proferidas.

2 - Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros meios técnicos diferentes da escrita comum, o funcionário que deles...

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