Acórdão nº 186/22.3T8MFR.L1-7 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-04-18

Data de Julgamento18 Abril 2023
Ano2023
Número Acordão186/22.3T8MFR.L1-7
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório:
Instaurou o Ministério Público, em 2.3.2022, processo especial de acompanhamento de maior contra A , alegando, no essencial, que a mesma padece de perturbação afetiva bipolar e declínio cognitivo, encontrando-se desorientada no tempo e no espaço, não sabendo usar dinheiro nem realizar cálculos simples, ler ou escrever, pelo que se encontra na dependência de terceiros para realizar todas as atividades da vida quotidiana e internada em instituição desde 22.7.2019. Requer a aplicação da medida de acompanhamento de representação geral, prevista no artigo 145, nº 2, al. b), do C.C., por razões de saúde, com dispensa de constituição de conselho de Família.
Determinada a citação da requerida por contacto pessoal e frustrada a diligência em virtude da requerida não ter demonstrado “capacidade de compreender o acto”, foi nomeada patrona oficiosa, ao abrigo do disposto nos arts. 895, nº 2, e 21 do C.P.C., que, uma vez citada para o efeito, não apresentou contestação.
Foi realizado exame pericial à beneficiária, nos termos do art. 899, nº 1, do C.P.C., tendo sido elaborado o respetivo relatório (pelo INMLCF) que concluiu no sentido de que “a Examinanda poderá beneficiar da nomeação de um Acompanhante por razões de saúde, sendo que os resultados do exame pericial suportam a medida proposta na Petição Inicial.”
Em 7.2.2023, decidiu-se que “Considerando o conteúdo do relatório pericial que antecede e a vigência da Lei n.°1-A/2020 de 19.03, dispenso a realização da audição da beneficiária, após o que foi de imediato proferida a seguinte sentença: “(…)
a) Declaro a necessidade de representação geral de A, por razões de saúde, desde 2021;
b) Nomeio como sua acompanhante B, filha;
c) Dispenso a constituição de Conselho de Família;
d) Declaro que se desconhece a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde.
(…).”
Interpôs recurso o Ministério Público, apresentando as respetivas alegações que culmina com as conclusões a seguir transcritas:

1. Por decisão proferida a 07.02.2023, em momento anterior à prolação da sentença, a Mm.ª Juiz do tribunal a quo decidiu dispensar a realização da audição da beneficiária "considerando o conteúdo do relatório pericial e a vigência da Lei n.° 1-A/ 2020 de 19.03".
2. Conforme amplamente defendido na nossa jurisprudência nos processos de maior acompanhado, não pode dispensar-se a audição do beneficiário, exceto se estiver cabalmente demonstrada situação que impeça, ou torne gravemente inconveniente, a sua audição.
3. Consideramos que a invocação da vigência da Lei n.° 1-A/2020 de 19.03 (diploma que, na altura da sua entrada em vigor, veio estabelecer medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19) não é fundamento suficiente para dispensar a diligência de audição pessoal do beneficiário (até porque no momento da decisão proferida a situação pandémica originada por tal vírus Covid 19 se encontrava devidamente controlada), a qual, diga-se, sempre poderia ser realizada através de meio de comunicação à distância adequado (nesse mesmo sentido vide o art. 6.°-E/n.° 2 al. b), n.° 4 al. a) e n.° 5 da primeira citada lei).
4. Nada consta no relatório de perícia médico legal junto aos autos que nos permitam ainda concluir que a beneficiária se encontra numa situação que impeça ou torne gravemente inconveniente a sua audição. Aliás, quando vemos que daí consta que “questionada sobre se conhecia o motivo de realização do exame pericial disse desconhecer o mesmo. Referiu também desconhecer a existência do presente processo e a sua natureza”, pensamos que tal audição, considerando a natureza do presente processo, é necessária e indispensável.
5. Nos processos de maior acompanhado a diligência de audição pessoal e direta do beneficiário é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada, sendo que qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando a realização da diligência – arts. 897.° e 898.° ambos do Código Processo Civil
6. Com efeito, esta audição pessoal deve sempre ocorrer, mesmo que o juiz se tenha que deslocar ao local onde o beneficiário se encontre, pois que um dos princípios orientadores do processo especial de acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder conhecer a real situação daquele, mas também para se poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a essa situação e, a nosso ver, da pessoa que melhor desempenhará as funções de acompanhante.
7. Prescindir da audição pessoal do beneficiário implicaria reduzir, de modo desproporcionado e sem motivo bastante, o seu direito a ser consultado, contrariando assim um dos mais relevantes princípios norteadores do regime do maior acompanhado.
8. Cremos, pois, que o despacho da Mm.ª Juiz do tribunal a quo, que dispensou a realização da audição pessoal e direta da beneficiária, violou a norma legal prevista no art. 897°, n° 2 do CPC, o que, por ter manifesta influência no exame e decisão da causa, configura uma nulidade processual, nos termos previstos no art. 195°, n° 1, 2ª parte, do CPC, e que tem como consequência a anulação do processado subsequente, maxime da sentença final, proferida posteriormente.
9. Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogar-se a decisão que dispensou a realização da audição da beneficiária, anular o processado subsequente à decisão recorrida, incluindo a sentença final, e determinar-se a audição pessoal e direta de A, nos termos do artigo 139°, n° 1 do Código Civil e nos artigos 897°, n°2 e 898° ambos do Código de Processo Civil.”
Não se mostram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação em 1ª instância, sendo o regime de subida o que consta do despacho de 30.3.2023, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentos de Facto:
A factualidade a ponderar na apreciação do presente recurso é a que acima consta do relatório tendo, por sua vez, a decisão da 1ª instância fixado como provados, “Face aos elementos recolhidos nos autos, documentos a estes juntos e relatório pericial”, os seguintes factos:
1) A beneficiária nasceu a …;
2) É mãe de B, nascida a …;
3) A beneficiária padece de perturbação neurocognitiva major em contexto de perturbação afectiva bipolar;
4) Em virtude disso, é dependente de terceiros para a realização das actividades de higiene e alimentação, encontrando-se actualmente institucionalizada;
5) Encontra-se desorientada no espaço, no tempo e parcialmente na sua pessoa;
6) Manifesta graves défices cognitivos e mnésicos a nível da memória episódica e semântica;
7) Revela discurso provocado, de respostas curtas e ao lado;
8) Tem dificuldades no cálculo simples;
9) Reconhece o valor facial do dinheiro mas desconhece o seu valor económico, bem como o dos bens comuns;
10) A patologia que afecta a beneficiária é medicamente qualificada como irreversível e incapacita-a desde o ano de 2021.
*
III- Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve este tribunal conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões acima transcritas, cumpre apreciar se a determinada dispensa da audição da beneficiária constitui nulidade processual que implique a anulação da sentença proferida.
Analisando.
De acordo com o nº 1 do art. 195 do C.P.C.: “(…) a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”
A nulidade processual a que se refere este art. 195 do C.P.C. pode ser arguida pela parte interessada na prática do ato omitido, nos termos do art. 197, nº 1, do C.P.C..
Quanto ao prazo de arguição, dispõe o art. 149, nº 1, do C.P.C., que: “Na falta de disposição especial, é de 10 dias o prazo para as partes requererem qualquer ato ou diligência, arguirem nulidades, deduzirem incidentes ou exercerem qualquer outro poder processual; (…).”
Assim, no que toca ao prazo em que deve ser arguida a nulidade, será este, na falta de disposição especial, de 10 dias contados (quando a parte não estiver presente no momento em que for cometida) “do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência” (art. 199, nº 1, do C.P.C.).
Por conseguinte, se a parte não estiver presente quando a nulidade foi cometida, dispõe de
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