Acórdão nº 1600/19.0T9OER.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-02-08

Data de Julgamento08 Fevereiro 2023
Ano2023
Número Acordão1600/19.0T9OER.L1-3
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
*
I – relatório
1. Identificação dos intervenientes processuais
Assistentes: VCCB, CFCP e VAECF
Arguido: LVA.
2. No seguimento da queixa apresentada e findo o inquérito, o MP, procedeu ao arquivamento dos autos porquanto entendeu que, relativamente ao crime de devassa da vida privada não estaria preenchido o elemento subjectivo do tipo de crime e quanto ao crime de fotografias ilícitas os factos não integrariam os elementos objectivos do tipo de ilícito.
3. Vieram então os assistentes requerer abertura de instrução, pugnando pela pronúncia dos arguidos, pela prática dos crimes de gravações e fotografias ilícitas agravado, p. e p. pelo art.º 199.º, n.º 2, al. b), do CP, conjugado com os art.ºs 199.º, n.º 3, e 197.º e de devassa da vida privada, pep pelo art.º 192 do mesmo diploma legal.
4. Finda a instrução, em 19 de Abril de 2022, foi proferida a seguinte decisão, pela Mª JIC:
Em face do exposto, decide-se não pronunciar os arguidos LVA e SPSJF, pela prática dos crimes de devassa da vida privada, p.p. pelo artigo 192º e de gravações e fotografias ilícitas, p.p. no artigo 199º, n.º 2 alínea b) e n.º 3 e 197º do CP, ou por quaisquer outros.
5. Inconformados, os assistentes interpuseram recurso desta decisão, pugnando pela revogação do despacho de não pronúncia e a sua substituição por outro que pronuncie o arguido LVA pela prática do crime de gravações e fotografias ilícitas agravado, p. e p. pelo art.º 199. º, n.º 2, al. b), do CP, conjugado com os art.ºs 199.º, n.º 3, e 197. º, que lhes haviam imputado.
6. O recurso foi admitido.
7. O M.º P.º respondeu à motivação apresentada, defendendo a sua improcedência.
8. Neste tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se em idêntico sentido.
9. Na sua resposta, os recorrentes mantiveram o já por si invocado.

II – questão a decidir.
Enquadramento jurídico dos factos.

iii – fundamentação.
1. A decisão sobre a qual recai a censura dos recorrentes, tem o seguinte teor:
Fixadas as directrizes, que de acordo com a lei, nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interessa agora, apurar, por um lado, se em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pelo arguido dos factos que lhe são imputados e, por outro lado, concluindo-se afirmativamente, se tais factos sustentam a imputação jurídico-criminal efectuada no mesmo douto despacho.
***
Da prova produzida no inquérito e na instrução e do enquadramento jurídico:
Factos indiciariamente apurados:
No dia 01 de Outubro de 2018, para ilustrar a notícia sobre duas publicações feitas pelo primeiro assistente na sua página pessoa na rede social facebook, a TVI, no jornal da uma, apresentado pela jornalista CR, divulgou uma fotografia do perfil do primeiro assistente onde está retratada a sua família (incluindo os segundo e terceiro assistentes e seus filhos menores).
A referida fotografia, durante a supra referida reportagem noticiosa da autoria de LVA, aparece três vezes para ilustrar uma notícia que nada tem a ver com a vida pessoal e familiar do assistente, mas sim com as publicações que o mesmo decide fazer na sua página de facebook e nas quais alude ao processo XYZ.
A fotografia em que o ora 1º assistente surge acompanhado pelos seus filhos menores, pelo seu filho maior, V e pela sua mulher surge durante a referida reportagem, aos minutos 14.38, 15.03, 15.38 do programa jornal da uma do referido dia.
Mais tarde, a própria TVI, no dia 01.10.18, no jornal das 8, apresentado pelo jornalista PP, voltou a usar a fotografia por duas vezes, numa versão mais curta da mesma reportagem e já com as caras da família do 1º assistente distorcidas.
O autor da reportagem foi o arguido LVA.
Os arguidos não obtiveram autorização dos retratados para divulgarem tal fotografia no contexto da reportagem.
A reportagem teve uma enorme divulgação pública, pois, como é sabido, o jornal da uma da TVI é um dos telejornais com maiores níveis de audiência em Portugal e a matéria em apreço estava a suscitar uma grande atenção pública.
Na imagem divulgada pelos arguidos está em causa a família do assistente e a sua imagem no contexto dessa mesma família, pela 2ª assistente e pelo 3º assistente, igualmente retratado na fotografia divulgada.
Os assistentes ficaram magoados pela divulgação pública da sua imagem de família, que ficou assim exposta à curiosidade e maledicência públicas.
Factos não indiciariamente apurados:
A exibição da reportagem foi do conhecimento do arguido SPSJF que, à época, era o director da informação da TVI, que autorizou e determinou tal divulgação.
Os arguidos previram necessariamente que a divulgação da imagem em apreço devassaria a vida privada dos ali retratados, que viam a sua imagem exposta no contexto de uma reportagem que se reportava ao envolvimento do 1º assistente no processo relativo ao desaparecimento das armas de XYZ, onde lhe era imputada uma actividade de índole criminosa.
Os arguidos sabiam que ao divulga-la estavam a agir contra a sua vontade presumida, o que não lhes era permitido.
Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram criminalmente punidas.
Da fundamentação relativamente aos factos que se consideram estar suficientemente indiciados ou não indiciados:
No que concerne aos factos indiciariamente apurados os mesmos resultam da inquirição dos ofendidos, que se constituíram assistentes, VCCB, CFCP e VAECF que confirmaram na íntegra o teor da queixa-crime apresentada, tendo a última acrescentado que a situação a afetou psicologicamente, tendo-lhe sido diagnosticada uma depressão, que a obrigou a ficar de baixa um mês.
Foi constituído arguido o diretor de informação da TVI, SPSJF, o qual não prestou declarações.
Indagada pelo Tribunal veio a TVI informar que o jornalista responsável pela reportagem foi LVA, o qual também constituído arguido não prestou declarações.
Foi ainda junta aos autos uma pen drive com a reportagem em apreço.
No que se refere aos factos não indiciariamente apurados, os mesmos são o resultado de não se ter feito prova acerca deles, designadamente que o arguido SPSJF tivesse tido conhecimento da reportagem, e, quanto aos factos referentes aos elementos subjectivos, a falta de indiciação resulta de os factos objectivamente apurados apontarem em sentido diverso.
Na verdade, sendo o próprio assistente VCCB que publica conteúdos que pretende sejam vistos pelas pessoas em geral, no seu facebook, sem que restrinja a publicidade, e que divulga como fotografia de perfil, sabido pela generalidade dos utilizadores de facebook que é pública, uma fotografia dos seus filhos menores e da sua mulher, não há razão para alguém presumir que a divulgação da tal fotografia devassa a vida privada ou é contrária à sua vontade.
O assistente podia ter qualquer outra fotografia de perfil, designadamente só com a sua imagem, mas, no uso do seu poder paternal, decidiu revelar, no facebook, de forma pública, uma fotografia dos seus filhos menores, certamente sabendo que qualquer pessoa a poderia ver desde que aceda ao seu facebook. Isto é, no momento da reportagem, qualquer pessoa que acedesse ao facebook do assistente poderia ver a imagem que foi exibida na televisão. Num mundo dominado pelas redes sociais, é do domínio comum que a foto de perfil é pública, e os assistentes não invocam desconhecimento dessa definição de privacidade da rede social Facebook.
Não se vê, pois, como possa invocar-se que os arguidos agiram de forma consciente com intenção de devassar a privacidade dos assistentes ou publicar contra a sua vontade uma fotografia relativamente à qual não obtiveram autorização para publicitar porque se alguém o fez primeiramente foi o assistente, que, aliás, propositadamente, para que as pessoas acedessem a esse conteúdo, veio tecer considerações acerca do processo XYZ. Aliás, a fotografia é mostrada de forma muitíssimo breve e o destaque vai para os comentários feitos pelo assistente VCCB, donde se retira que não havia intenção do arguido de colocar enfase na fotografia. Mas, qualquer pessoa que nesse momento acedesse ao facebook do assistente poderia ver, aliás com muito mais calma e pormenor, a dita fotografia cuja divulgação os assistentes entendem ser uma devassa da sua vida privada.
O crime de devassa da vida privada está previsto no art.º 192.º do Código Penal, dispondo o artigo que “Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:
a) Interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, mensagens de correio electrónico ou facturação detalhada;
b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos;
c) Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou
d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa; é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.”. O bem jurídico protegido pelo preceito é o direito à intimidade.
Como elemento subjetivo do ilícito-tipo, o legislador optou por exigir o dolo direto, previsto no n.º 1 do art.º 14 do Código Penal, fazendo depender a punibilidade da intenção de devassar a vida privada das pessoas.
No caso, não existindo essa intenção, não está preenchido o elemento subjectivo deste tipo de crime.
O crime de gravações e fotografias ilícitas está consagrado no art.º 199.º do Código Penal, dizendo, na parte que respeita aos presentes autos: “Na mesma pena (pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias) incorre quem, contra vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT