Acórdão nº 1220/23.5PBBRG -A.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2023-11-28

Ano2023
Número Acordão1220/23.5PBBRG -A.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

No Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., após o interrogatório a que alude o art.º 141º do C.P. Penal, o Exmo. JIC determinou, por despacho proferido no dia 27-07-2023, que, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, 195.º, 196.º, 200.º, n.º 1, alíneas a), d), e f), e 204.º, alínea c), do Código de Processo Penal, e artigos 31.º, n.º 1, alíneas d), 35.º e 36.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito, cumulativamente, às seguintes medidas de coacção:

- Termo de Identidade e Residência, já prestado;
- Proibição de contactar as ofendidas BB e CC, por qualquer meio (escrito, falado ou tecnológico), directo ou por interposta pessoa;
- Proibição de se aproximar a uma distância inferior a 300 metros das ofendidas BB e CC e proibição de entrar e permanecer na residência onde estas habitam, sita na Rua ..., ..., ..., em ..., ..., bem assim como do respectivo local de trabalho, ou de se aproximar destes locais a uma distância inferior a 300 metros.
A fiscalização das medidas de coacção agora aplicadas será efectuada através dos meios técnicos de controlo à distância, por se considerar existir o perigo de o arguido atentar, de forma grave, contra a integridade física da ofendida. Pelo exposto, e independentemente do consentimento do arguido, determino que as preditas medidas de coacção sejam fiscalizadas através de VE – art. 36.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009.

I.1.Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido interpor o presente recurso, apresentando a respectiva motivação, que finaliza com as conclusões que a seguir se transcrevem:
A- “A utilização de meios de vigilância eletrónica do cumprimento da medida depende, não só da verificação de um concreto juízo de imprescindibilidade dessa medida para a proteção da vítima, mas também da obtenção de consentimento do arguido, da vítima e das pessoas que vivam com o agente ou a vítima e das que possam ser afetadas pela permanência obrigatória da arguida ou do agente em determinado local. O que não sucede no caso sub judice.
B- Como claramente resulta da letra do art. 35º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, a aplicação da fiscalização por meios técnicos de controlo à distância depende da demonstração da mesma se mostrar imprescindível para a proteção da vítima, o que não se mostra minimamente observado na decisão recorrida.
C- A utilização dos meios técnicos de controlo à distância – vulgo “pulseira eletrónica” – colide frontalmente com o seu direito “à reserva da intimidade da vida privada, garantido pelo artigo 26.° da Constituição.”
D- O artigo 36º, n.º 7, do referido diploma, postula que a dispensa do consentimento do arguido e das pessoas que com ele vivem, determinada pelo tribunal a quo, está dependente de decisão fundamentada sobre a imprescindibilidade da referida fiscalização por meios eletrónicos para a proteção dos direitos da vítima.
E- Na ausência dessa fundamentação, apresenta-se como injustificada a imposição ao arguido da fiscalização do cumprimento da medida de coação através de meios de controlo à distância.
F- Para a existência do crime de violência doméstica é necessário que os factos praticados afetem de modo grave e saúde física, psíquica ou emocional da vítima; que essa afetação comprometa de igual modo gravemente o desenvolvimento (ou a revelação / manifestação), da sua personalidade (e da sua maneira de ser), e com isso ponha em causa (ou seja suscetível de pôr em causa), a dignidade da pessoa humana (ser livre e responsável), o que não se verifica no caso presente.
G- A utilização de meios de vigilância eletrónica do cumprimento da medida depende, não só da verificação de um concreto juízo de imprescindibilidade dessa medida para a proteção da vítima, mas também da obtenção de consentimento do arguido, da vítima e das pessoas que vivam com o agente ou a vítima e das que possam ser afetadas pela permanência obrigatória da arguida ou do agente em determinado local. O que não sucede no caso sub judice.
H- O Artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe que toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas e o artigo 12.º Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei.
I- O conjunto de ações típicas que integram o ilícito criminal em apreço, uma vez analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são cometidas, constituirão maus-tratos apenas quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou em estado de agressão permanente. O que não é certamente o caso dos autos
J- Os factos provados – e as circunstâncias em que foram praticados – não são reveladores de qualquer especial gravidade ou crueldade por parte do arguido, mas resultam de discussões em família e do facto do arguido ter querido exercer o seu direito e dever de educar a sua filha menor que, apesar de ter todas as condições para estudar e obter aproveitamento, teve negativa a todas as disciplinas curriculares, pois ao invés de estudar utilizava o computador e o telefone móvel para jogar ou brincar.
Termos em que deverá o arguido não ser obrigado a colocar o dispositivo de vigilância eletrónica, assim se fazendo a mais elementar Justiça.”

I.2. O Ministério Público, em 1ª instância não respondeu ao recurso

1.3 Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, porquanto entende que, face à gravidade da conduta do arguido, na estrita preservação da segurança das vítimas, as medidas coactivas aplicadas só lograrão efectivo efeito protector, se forem fiscalizadas pelos meios técnicos de controlo à distância, conforme foi decidido pelo Mmº JIC.

1.4. Cumprido o art.º 417º, nº 2, do CPP, o recorrente respondeu concluindo que “não podem os factos invocados serem apreciados para qualquer efeito, pois toda a família atuando de forma concertada com vista a obter um enriquecimento à custa do arguido são partes em processo cíveis a decorrer no Tribunal de Família onde, apesar de tudo, o arguido tudo tem feito para preservar a harmonia familiar, estando a suportar os custos com o EMP01... da filha e os alimentos do filho, suportando um custo mensal de mais de 1.250 €”. Juntou 3 documentos.

1.5. Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da conferência, por o recurso aí dever ser julgado.

II-FUNDAMENTAÇÃO

1 – OBJECTO DO RECURSO:


A jurisprudência do STJ [1] firmou-se há muito no sentido de que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.[2]
Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são as seguintes:
1.Da existência de indícios da prática do crime de violência doméstica; e
2.Da verificação dos pressupostos de fiscalização das medidas de coacção aplicadas através dos meios técnicos de controlo à distância.

2- DA DECISÃO RECORRIDA:

Factualidade indiciada e motivação (transcrição):
“I. Indiciam os autos a prática pelo arguido dos seguintes factos
a) O arguido AA casou com BB em .../.../2003, na ..., passando a residir naquele país cerca de um ano; após residiram na ..., tendo passado a residir em Portugal a partir de agosto de 2022, na Rua ..., em ..., ....
b) Na pendência do casamento de ambos nasceram os dois filhos do casal: AA em .../.../2004, e CC em .../.../2008.
c) Desde pelo menos finais de 2004, o arguido passou a proibir BB de se ausentar da residência.
d) Após o nascimento da filha do casal, em 2008, o arguido passou a agredir BB, designadamente, apertando-lhe o pescoço com as mãos, puxando-lhe pelos cabelos, desferindo-lhe pontapés e empurrando-lhe o corpo contra a parede, o que ocorreu várias vezes, em datas e com frequência ainda não apuradas e) Passou, ainda, o arguido a dirigir-se à mesma, diariamente, nos seguintes moldes: “estúpida, deficiente, doente da cabeça, como mulher não vales nada, ninguém te quer, todos te odeiam, ninguém gosta de ti”. f) O arguido, desde então, que controla diariamente o seu telemóvel, bem como o da filha, visualizando o seu conteúdo.
g) O arguido passou também, desde tenra idade a bater na filha CC nos mesmos moldes referidos em d), bem como a apodá-la de “estúpida” dizendo-lhe que “não era sua filha, que não era uma pessoa, que não existia”.
h) Em data não concretamente apurada, na cozinha da residência do casal, o arguido prendeu BB a uma cadeira e ligou o gaz do fogão, ao mesmo tempo que lhe disse que se não fosse submissa a matava.
i) No verão de 2021, na residência do casal o arguido desferiu murros na barriga de CC e apertou-lhe o pescoço com as mãos, tendo ainda batido em BB, de forma não apurada, quando esta tentava que aquele cessasse com as agressões à filha.
j) Em maio de 2022, em Portugal, na residência supra identificada, o arguido colocou a filha na rua e disse-lhe que iria dormir fora de casa, tendo-lhe BB dado um cobertor.
k) CC permaneceu na rua até o arguido adormecer, altura em que a mãe foi em seu auxílio e a deixou entrar novamente na residência.
l) Em agosto de 2022, no primeiro dia em que passaram a residir definitivamente em Portugal, o arguido, na residência do casal, dirigiu-se a BB nos seguintes...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT